Por Jorge Folena
No dia 27 de julho de 1988, o ex-presidente José Sarney, com certo tom de ameaça, dirigiu-se aos constituintes, em cadeia nacional de rádio e televisão, para afirmar, ao longo de vinte e oito minutos, que o texto constitucional que estava para ser aprovado deixaria “o país ingovernável”.
Na verdade, José Sarney manifestou na ocasião os interesses mais atrasados da classe dominante brasileira, que entendia que o reconhecimento dos amplos direitos sociais inseridos na Constituição brasileira de 1988 teria um grande impacto sobre o orçamento geral da União, controlado para satisfazer apenas os interesses dos muito ricos, deixando os pobres entregues à própria sorte. É importante lembrar, por exemplo, que, antes da Constituição de 1988 não existia o sistema único de saúde com atendimento universal para todos os brasileiros.
E o presidente Sarney, com o velho e surrado argumento, afirmava que o novo texto constitucional representaria um desencorajamento à produção, induziria o país ao “ócio à produtividade” e “o governo não teria dinheiro para pagar os benefícios sociais aprovados pelo congresso constituinte”; ou seja, a mesma conversa fiada empregada até hoje contra a classe trabalhadora para justificar as draconianas reformas trabalhista e previdenciária, durante os governos de Michel Temer e Bolsonaro.
Naquela oportunidade, Luís Inácio Lula da Silva, deputado constituinte e líder do Partido dos Trabalhadores na Assembleia Constituinte, assim se manifestou: “A fala do presidente causou três espantos: 1) ver um presidente assustar a nação com o fantasma da ingovernabilidade usando informações imprecisas; 2) ver um presidente reclamar contra liberalidades da constituinte, quando seus líderes não ficaram calados, como votaram a favor dos dispositivos citados; 3) ver um presidente da República, supostamente guardião da independência e da economia do país, ocultar em seu pronunciamento que está forçando a eliminação da propriedade da União sobre o subsolo, a volta concreta do contrato de risco e a preferência à empresa nacional ao Estado” (Folha de São Paulo, 27/07/1988, p. A6).
Com certeza, ao contrário do que afirmou José Sarney em julho de 1988, o Brasil não se tornou ingovernável em decorrência da implementação dos direitos sociais previstos na redação originária da Constituição de 1988, mas sim pela quebra do equilíbrio das forças políticas e sociais, que, segundo a lógica do pensamento liberal, deveria se manifestar pela harmonia e a separação dos poderes.
Digo isto por causa das recorrentes investidas do Poder Legislativo sobre o controle do orçamento da União, que têm ocorrido nos últimos anos no Brasil. De acordo com a Constituição, aprovada originalmente em 1988, o orçamento deve ser elaborado pelo Poder Executivo e autorizado pelo Parlamento, a cada ano, por meio da lei orçamentária anual. Nesse caso (do orçamento autorizativo), o Poder Executivo poderia deixar de executar, sem qualquer justificativa, as despesas indicadas pelos parlamentares, por ser a administração do orçamento público uma atribuição exclusiva do governo, num regime presidencialista.
Contudo, diante da fragilidade política a que foram propositalmente conduzidos alguns governos, como sucedeu no início do segundo mandato da Presidente Dilma Rousseff (que não tinha maioria parlamentar e enfrentava uma clara ação golpista desde o final de 2014), o parlamento liderado à época por Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados, aprovou a Emenda Constitucional 86, de 17 de março de 2015, que tornou impositivas as emendas individuais dos parlamentares ao orçamento; a partir daí, o governo estava obrigado a executar as emendas ao orçamento apresentadas pelos parlamentares; deste modo, foi invadida a esfera de competência direta do Poder Executivo, que tinha sido determinada originalmente no texto constitucional aprovado em 5 de outubro de 1988.
Assim, teve início o processo de controle de parte do orçamento pelos parlamentares, que passaram a direcionar em suas emendas as verbas indicadas sem qualquer critério de transparência, e, em muitos casos, para fomentar seus interesses particulares, como apurado, para construção de rodovias de acesso às suas propriedades rurais, compras de tratores etc.
A partir de 2019, com a posse de Jair Bolsonaro (que nunca teve interesse em governar o país para o interesse da população e cujo projeto era implantar uma ditadura fascista no Brasil) foi aprovada a Emenda Constitucional 100, de 26/06/2019, que ampliou o orçamento impositivo para tonar obrigatória a execução da programação orçamentária de bancadas parlamentares; coroou-se, deste modo, o avanço do parlamento sobre o orçamento público, enfraquecendo ainda mais o Poder Executivo em relação ao Poder Legislativo.
Foi durante este período que a sociedade se deparou com as ações clandestinas, imorais e obscuras, praticadas por parlamentares por meio do denominado “orçamento secreto”, com a finalidade de se apropriar ainda mais do orçamento público e desviar para interesses particulares os mais escusos possíveis.
Em dezembro de 2022, às vésperas do final do “governo” de Bolsonaro, o STF, por meio de voto condutor da Ministra Rosa Weber, no julgamento das ações de descumprimento de preceito fundamental números 850, 851, 854 e 1.014, afirmou ser “o orçamento secreto incompatível com a democracia”, uma vez que o uso de emendas de relator para incluir novas despesas no projeto de lei orçamentária da União, sem identificação do proponente, viola os princípios da transparência, impessoalidade, moralidade e publicidade.
Naquela oportunidade, os líderes do parlamento se comprometeram com o STF a dar publicidade às emendas do relator (RP-9), que eram destinadas a um grupo restrito de parlamentares e sem a identificação do respectivo destino. Ou seja, de modo totalmente obscuro quanto ao beneficiário ou a destinação daquela parcela do orçamento impositivo controlado pelo legislativo.
Porém, da parte do parlamento, nada mudou até hoje, uma vez que segue livremente o abuso na aplicação do orçamento impositivo de iniciativa dos parlamentares, por meio de emendas de bancada por estado e de comissão, sem quaisquer esclarecimentos.
Quando o ministro Flávio Dino, sucessor dos processos distribuídos à ex-ministra Rosa Weber, tomou a decisão de suspender as emendas impositivas por total falta de transparência e porque o Parlamento não regulamentou até hoje o controle sobre o destino destas verbas orçamentárias, um mundo de ameaças recaiu sobre o STF e o governo federal.
Imediatamente, o Presidente da Câmara dos Deputados colocou para discussão a Proposta de Emenda Constitucional que limita o poder dos ministros do STF de concederem medidas liminares isoladamente (já aprovada pelo Senado), estabelecendo um nítido confronto entre os poderes.
Foi então realizada uma reunião no STF com os três Poderes, para tentar buscar um equilíbrio entre eles, mas sabia-se de antemão que não se chegaria a nenhum lugar, porque os parlamentares estão cientes de sua força no controle do orçamento e também de sua capacidade de fazer por conta própria qualquer alteração constitucional por dentro da ordem (adquirida a partir do golpe contra Dilma Rousseff), inclusive para enfraquecer os demais poderes, como oficializar o semi-presidencialismo e fixar mandato por prazo determinado para os ministros do STF, o que sem dúvida será inconstitucional por violar a cláusula pétrea da separação de poderes.
Entretanto, esse mesmo questionamento deveria ter sido apresentado em relação às emendas constitucionais 86 e 100, que impuseram o orçamento impositivo e enfraqueceram o Poder Executivo, mas ninguém até hoje teve a coragem de pedir a respectiva declaração de inconstitucionalidade.
A meu juízo, estamos diante da maior crise de governabilidade vivida desde a promulgação da Constituição de 1988, pois o Parlamento conhece bem as suas diversas inconstitucionalidades e não tem nenhum interesse em dar transparência ao destino das verbas orçamentárias, pois isto lhe permite imenso controle político.
Com efeito, não sei dizer se, quando o ex-presidente Sarney manifestou naquele julho de 1988 que o Brasil viveria um estado “ingovernabilidade”, se ele teria imaginado que isto poderia de fato acontecer e que alguma vez o Poder Legislativo teria tamanha força para ameaçar o Governo e o Poder Judiciário, como ocorre na atualidade.
Está claro que nada vai bem na política brasileira, que, de um lado, tem os fascistas prosseguindo livremente em suas arruaças e provocações, sem que as instituições políticas se manifestem contra eles, ao contrário, permitem que eles caminhem soltos pelas ruas do país; e, do outro lado, temos os políticos gananciosos que se apropriam indevidamente do orçamento público para seus interesses particulares, sem que nenhuma medida seja tomada, com seriedade, pelas autoridades, para colocar um fim na malversação dos recursos provenientes do orçamento.
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