Por Francisco Carlos
Teixeira da Silva[1]
PARTE I:
As
Condições Globais:
Não resta muita dúvida
de que a crise que vivemos, desde as “Jornadas de 2013”, é a maior da História
da República. A soma dos seus aspectos
econômicos, sociais – o devastador número de desempregados, subempregados e
desalentados em busca de uma posição de trabalho, que hoje em conjunto atinge cerca
de 21 milhões de pessoas – e os aspectos
institucionais desembocaram numa crise sem precedentes na História
contemporânea do país. Acima de tudo a crise institucional, no sentido que as
forças centrífugas extrapolaram o embate político, colocando em risco a autonomia,
harmonia e independência dos Poderes da República. A ação política entra em
choque, e, por vezes, em cheque, com a Constituição e seu ordenamento. O
General-comandante do Exército do Brasil, Eduardo Villas Bôas, do alto de sua
experiência, vivência e abnegação – em circunstâncias dolorosas – viu-se
obrigado a declarar que o Brasil “... é um país à deriva” [2].
Neste sentido, análises
superficiais e eivadas de “parti pris” ideológicos, vindas de todos os lados,
voltadas para “um passado que não quer passar” não ajudam, em nada, a
compreender a atual crise brasileira. A desestabilização do Governo
Dilma-Temer, desde 2013 – para além das conhecidas razões internas –, ou mesmo
antes disso, e até a desestabilização da sua continuação. O Governo Temer,
sustentado pela coalização (básica) PMDB+PSDB+DEM e demais partidos do chamado
“Centrão”, por um processo de amplo espectro global denominado por Pepe Escobar
como “Guerra Híbrida”[3],
prende-se a um conjunto de políticas que compõem uma estratégia de poder
global, especialmente na segunda administração Barack Obama. A chamada “Estratégia
das Guerras Híbridas” consiste na mobilização de diversos e múltiplos recursos,
organizações e entidades, internas e externas, visando derrubar, mudar e
substituir regimes políticos, governos e governantes, considerados
incompatíveis aos interesses de uma potência, que assim ficaria isenta das
tremendas complicações e custos das guerras abertas de “substituição de
regimes”.
Sua emergência deu-se
na esteira dos espetaculares fracassos americanos no Afeganistão, em 2001, e
Iraque, em 2003, onde guerras para substituir “tiranias” resultaram na
destruição de regimes fortes, mesmo que tirânicos, e na sua substituição por
“rogue state”, “out law regime”, ou simplesmente num território de lutas onde
forças adversas – talibã, Al-Qaeda e mais tarde o Daesh – souberam aproveitar
para erguer bases de poder adverso[4].
As “Guerras Híbridas”,
subvertendo “por dentro” os regimes, utilizando-se dos novos e poderosos meios
de comunicação, como Blogs, Facebook, SMS, etc... – ao lado de massiva campanha
de mídia e, quando e onde necessário, com a sabotagem de setores chaves da
economia, provocando mal-estar coletivo e continuado, na maioria das vezes facilitado por incúria,
inépcia e corrupção interna – criariam as condições de florescimento de
“Primaveras” populares – termo retirado do famoso livro de Eric Hobsbawm, “A
Era das Revoluções”, para descrever a série de “revoluções” que varreram a
Europa e o Mundo Atlântico no século XIX.
Só que, então, de forma
espontânea e em decorrência de condições insuportáveis de vida para a maioria
da população como no século XIX industrial[5].
Hoje, a ambição dos
“feiticeiros sociais” de “think thanks” montados por Estados e empresas internacionais
é repetir, sob o condão de muito dinheiro e da magia digital, o fenômeno
descrito por Hobsbawm como a “Primavera dos Povos” – não ousando nem mesmo ser
originais na nomenclatura do fenômeno. Contudo, estas deveriam ser as
“Primaveras” induzidas por interesses externos, ocultos e inconfessáveis. Na
verdade, tratava-se de uma apropriação de estratégias de “guerra sem guerra”,
ou de “guerras por outros meios”, como já havia sido explicitado, desde 1999,
pelos oficiais chineses Qiao Ling e Wang Xiangsui, em sua obra “Guerra
Irrestrita”[6].
A novidade, no caso, é que a nova ofensiva seria feita por entidades e “ongs”,
tais como a “Open Society” e “think thanks” “Freedom House”, quase todas com
sedes nos Estados Unidos, contra governos estabelecidos, e não entre Estados
nacionais, como previsto pelos oficiais chineses.
Um a um os países e os
seus governos incômodos deveriam cair ante a manipulação das massas mobilizadas
pela magia digital. Essa era a “Primavera” proposta: a imprensa europeia já denominava,
então, o fenômeno de “the facebook revolution”: Tunísia, Egito, Síria, Ucrânia,
Turquia e, não no fim da lista, Brasil, eram alvos escolhidos[7].
Políticos como Tayyip
Erdogan – ele mesmo alvo de uma tentativa de “Primavera” e em seguida de “Golpe
sangrento” em 2017 – advertiram claramente para a existência de redes
internacionais – centradas em “nós” digitais montados em núcleos de cyberpoder
e com financiamento organizado por poderosos magnatas globais – prontos para
controlar, manter e manipular uma ordem mundial que perigava desde a crise
mundial de 2008. Em face da crescente ascensão chinesa, do “renascimento russo”
e da chegada do “Fenômeno Trump” –
arquinimigo de Georges Soros e de seu megaprojeto de controle financeiro global
– a subversão e hiper exploração das periferias, inclusive a reintrodução das
formas neocolonialistas de extrativismos, antipopulares, anti-ambientais e
acima de tudo contrárias ao livre exercício da plena soberania dos países externos
ao núcleo central do poder, como no caso dos Brics, tornaram-se um projeto
fundamental para o capital internacional – hoje fortemente contrariado no
interior mesmo dos Estados Unidos e disposto a quaisquer esforços para impor
seus interesses, seja em Washington, Brasília ou Bruxelas.
Num caso especial – os
Brics – era necessário, para tal estratégia, buscar o “elo mais fraco da cadeia”
visando desmontar todas as possibilidades de mudança na estrutura da “ordem
mundial”.
É neste contexto, e nos
recusando a embarcar no túnel do tempo para reviver a Guerra Fria (1945-1991),
que devemos entender as NOVAS condições mundiais e renunciar, com calma e
sabedoria, a lutar a última guerra passada num novo contexto de poder mundial e
nos preparar com valentia para os próximos embates. Por tais razões vemos com
profunda preocupação um documento que circula na galáxia da Internet – onde as
fraudes são comuns, devemos marcar como salvaguarda – apropriando-se
incorretamente do termo “Guerra Híbrida” para requentar um par de ideias
típicas da Guerra Fria e dos interesses daquela época[8].
Uma crise complexa, sem precedentes na história republicana, inserida num NOVO
CONTEXTO MUNDIAL não pode, e não deve, ser explicada por velhas experiências.
Por não ouvir De Gaulle
é que o Alto Comando francês obrigou-se a ouvir Heinz Guderian.
Uma situação mundial
NOVA requer em sua análise bem mais que requentar velhos manuais de contra insurreição
importados e uma bricolagem de jornais, mesmo que se apropriando, de forma
confusa, de novas terminologias. O avanço e a especialização das escolas
militares brasileiras nas áreas das ciências políticas, da história militar, da
gestão e do direito constitucional, hoje centros de pesquisa acadêmicos
avançados, comprovam isso.
Parte II:
As Condições Brasileiras:
Depois
de dois anos de uma “punção” de 3.6 no PIB brasileiro, a sociedade assiste,
perplexa, as mais altas instituições da República praticarem absurdas chicanas
e leguleios para poupar, salvar ou esconder evidências de um infinito rol de
delitos e crimes variados praticados pela elite no poder. Mesmo no interior de
tal elite, as disputas se afiguram tão gigantescas que a capacidade, histórica,
de “transformismo”, tão bem descrito por Raymundo Faoro[9],
já começam a se esfumar. Se a famosa “Lista Facchin”, tornada pública em 11 de
abril de 2017[10],
serviu como balde de água fria na base popular de apoio ao Governo Temer –
lembremos que a lista em ordem alfabética, começando com a letra “A” (!),
atingiu em cheio a base partidária não só do PMDB, como ainda do PSDB – foi,
sem sombra de dúvida, o julgamento da impugnação da “Chapa Dilma -Temer”, no
Superior Tribunal Eleitoral/TSE, na semana de 5/9 de junho de 2017, que fez o
país corar de vergonha. Claro, outros episódios, como o “Caso Renan”, já haviam
desvelado como os tribunais superiores brasileiros entendem as leis em face dos
poderosos. Mas, o espetáculo dos juízes do TSE, alguns deles juízes do STF, foi
o limite. Para uma grande parte da nação, incluindo a mídia, as classes médias
mais bem informadas e os setores militares que esperavam que a Suprema Corte
resolvesse o “Incômodo Temer” (além de impor um castigo a mais para Dilma), a
decepção foi gigantesca. Além da vergonha, servida como acompanhamento, havia o
deboche.
Neste
cenário devemos lidar, com clareza e objetividade, com os seguintes atores e
possibilidade para a crise brasileira:
O
Campo Político – doravante “Campo 1” – viu-se, desde a última sexta-feira 9 de junho, reforçado inesperadamente em seu papel de
protagonista da crise. O conjunto do mundo político, os partidos e suas
instituições, incluindo as duas casas do Congresso Nacional, estão com o protagonismo
máximo, sejam eles pró, contra ou pós-Temer. Neste conjunto, o Grupo Pró-Temer,
dito “Pró-Mercado”, com importantes filiações ao capital internacional e
setores financeiros nacionais, busca contar com uma base parlamentar de 200
votos no Congresso Nacional, para estender a sobrevida do Governo Temer até
2018. E também usar os poderes do Executivo nacional – nomeações, verbas de
bancada, obras – para garantir a fidelidade de grupos e lobbies (lembremos que
a maioria poderá enfrentar o banco dos réus, caso venha a perder o protagonismo
e as imunidades de mandato).
O
Campo Jurídico-Midiático, a “Lava-Jato+Mídia” – doravante “Campo 2” – sofreu um forte revés nos
tribunais e na manipulação e chicana frente às instituições do Estado, mas
conta ainda com forte apoio popular e possui a arma mais pesada, a artilharia da
mídia empresarial. Em seus objetivos finalistas, ambos os campos (1 e 2) possuem objetivos muito próximos, mas divergem
fortemente da forma de realização e em especial da contínua apropriação e
colonização do Estado e das Instituições Públicas pelas oligarquias políticas,
objetivo/meio histórico do “Campo 1”. Assim, é de se esperar que novas
denúncias, delações e “vazamentos” ocorram em seguida – emergências de novos
escândalos espetaculares manipulados pelo “Campo 2” – para minar as bases do
“Campo 1”, o que, em verdade, não é nada difícil de acontecer.
A
“Esquerda das ruas”, os movimentos sociais, os sindicatos, as grandes
organizações populares – MST, MTST, CUT, FUP, etc... – que chamaremos de “Campo
3”– fizeram um imenso esforço de reorganização e mobilização, em grande parte
prejudicado pela demora dos partidos “de esquerda” em aderir, divididos entre
si, paralisados por disputas e sem uma adequada análise do que aconteceu até 13
de maio de 2016. Esse “Campo 3”, a
“Esquerda das ruas”, foi capaz, no entanto, de “empurrar” os partidos de
esquerda e de alcançar movimentos surpreendentes, como a Greve Geral de 28 de
abril de 2017. Contudo, mesmo “com a mudança dos ventos”, e conseguindo “colar”
o “Fora Temer!”, ainda não “tem as suas velas todas pandas”. Necessita de tempo
para maior organização e mobilização, e as palavras de ordem ainda precisam
“colar” para além do “Fora Temer”, como “Diretas Já” e, principalmente, a avançada
“Nenhum Direito a Menos!” junto à opinião pública.
As
relações entre o “Campo 3” e o “Campo 1” são dinâmicas e ricas: as vantagens e
forças acumuladas pelo “Campo 3” podem, e esse seria o objetivo, mover as
pedras no tabuleiro do jogo do “Campo 1”, em especial em relação à votação das
chamadas “Reformas”, cujo maior objetivo, por parte do “Campo 3”, seria a
paralisação, o que poderia inviabilizar a sobrevida do “Campo1”.
Numa
posição de “reserva”, ainda divididos em seu debate interno (sic!) temos o “Quarto
Campo” tradicional de lutas no ambiente político brasileiro: os Militares.
Afastados e calados depois de 1988, foram trazidos de forma murmurante para a
cena política nacional com a criação da Comissão Nacional da Verdade, que
representou para eles um choque profundo. A percepção dos governos PT, e em
especial do Governo Dilma, prende-se fortemente à existência e resultados da
Comissão da Verdade. As questões referentes a orçamento, investimentos, equipamentos,
projeção internacional possuem muito pouco impacto em relação ao ponto anterior
e aquele pode, na verdade, refuncionalizar argumentos e personagens do velho
regime de 1964. Este seria o “Campo 4”: a reunião do General Villas Bôas, no
último dia 6 de junho de 2017, com
figuras proeminentes da Reserva, entre eles o General Alberto Cardoso, o mais
respeitado e ouvido general da Reserva brasileira, o General Augusto Heleno, um
excelente, eficiente e patriota oficial, com belíssima experiência de campo, o
General Rocha Paiva, um conservador conhecido, de grande capacidade
intelectual, responsável pela modernização da ECEME e ávido leitor de modernas teorias de guerra e
dos conflitos, além do general Bolívar Goellner, um elo da Inteligência, com o
atual Ministro da Segurança Nacional, General Sergio Echtgoyen, foi um fato
excepcional e assim foi noticiado[11].
Sem
dúvida, a questão do estado da Nação, do “país à deriva”, estava sobre a mesa e
a decisão, devida ao General Villas Bôas, de noticiar e deixar fotografar a
reunião, já é, em si mesmo, um fato memorável e significativo. Para tais homens
– preocupados com responsabilidades imensas – o mais fácil e desejado seria que
o STE, nas seguintes 48 horas, tivesse cumprido o desejo da Nação. Mas, a crise
atingiu o coração das instituições. O filhotismo, o transformismo, o
clientelismo e a insistência das oligarquias políticas em colonizar, em
proveito próprio, as Instituições do Estado, como nos descreveu Victor Nunes Leal[12],
são irresistíveis e incontornáveis para a avidez kamikaze da elite política
nacional.
A
natureza disciplinadora do “Campo 4”, quase seu inconsciente coletivo de
obediência, estabilidade e ordem tão natural aos militares, “urbi et orbi”,
serve ainda como um falso filtro nivelador da crise nacional: multidões nas
ruas, bandeiras vermelhas, passeatas, vidraças quebradas, tudo remete a “... um
passado que não quer passar” e dispara um mecanismo automático de perfilar “ao
lado da ordem”. Só que neste momento a “ordem” é a própria desordem, o deboche
é regra dominante, o “proteger e cuidar” é a quebra da soberania nacional, é o
entreguismo ao estrangeiro e a abertura da Amazônia além do desmanche da Engenharia
Nacional. Enfim, é tudo que pode tornar o Brasil um país colonial. A desordem se espalha pelo país a uma taxa de
22% ao ano: exatamente o ritmo do crescimento da violência urbana no país,
ignorada por uma elite que é incapaz de formular um plano de segurança pública
que vá além de tornar populosas comunidades reféns do narcotráfico em praças de
guerra.
Por
outro lado, o “Campo 1” fará tudo e qualquer coisa para trazer o “Campo 4” para
sua causa, como o fez no 24 de maio de 2017, no “Ocupa
Brasília”: perfilar as FFAA ao lado do Governo Temer seria uma vitória
grandiosa, e triste, para o “Campo 1”. Para o “Campo 2” e o “Campo 3” a
resposta seria imediata: a comparação, indevida, de Temer com o Regime
Civil-Militar de 1964, desconhecendo as características nacionais e
desenvolvimentistas dos Militares entre 1964 e 1985, e o quanto o Brasil
cresceu em ritmos inigualáveis e se desenvolveu em grandes passos, mesmo com
uma distribuição de renda injusta,
enquanto o Projeto Temer é uma pura e simples ameaça à soberania nacional.
[1]
Professor Titular de História Moderna e Contemporânea/UFRJ e ganhador do Prêmio
Jabuti de 2014.
[2]http://www.valor.com.br/cultura/4872438/somos-um-pais-que-esta-deriva,
consultado em 17/02/2017.
[3]
Pepe Escobar é um jornalista brasileiro nascido em 1954, com longa experiência
no jornalismo investigativo, trabalhou em vários jornais no país e no exterior
e publicou interessantes trabalhos, entre os quais “The Empire of the Chaos”, 1992, disponível
em: https://www.geopolitica.ru/sites/default/files/empire_of_chaos_-_near-final_pdf.pdf.
[4]
Soares, Luís Carlos e Teixeira Da Silva, Francisco C. Lições de Guerra. Rio de
Janeiro. 7letras, 2009.
[5]
Hobsbawm, Eric. A Era das Revoluções. Vozes, Petrópolis, 1998.
[6]
Ver Teixeira da Silva, Francisco C. Enciclopédia de Guerras e Revoluções. Rio
de Janeiro, Elsevier, V.3, 2016.
[8]
Referência aqui é ao documento “Guerra Híbrida: negros horizontes para o
Brasil”, atribuída a um alto oficial da Reserva brasileira. Deve, com certeza, ser um documento falso,
dada à ausência de qualquer sustentação teórica, comprovação factual e uso
inapropriado dos conceitos do autor da terminologia. Além disso, o caráter
“datado” do documento é tão claro, que até o uso de “negro” como um adjetivo
disfórico é inatual, extemporâneo e indesculpável num país de maioria populacional
negra e parda –Internet/sem referências.
[9]
Faoro, Raymundo. Os Donos do Poder. A formação do patronato político
brasileiro. Porto Alegre, Editora Globo, 1958.
[10]
Ver http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/exclusivo-a-lista-de-fachin/,
consultada em 9/05/2017.
[11] Ver: Reunião de generais inquieta o Congresso In: http://www.diariodaamazonia.com.br/reuniao-de-generais-inquieta-o-congresso/, consultado em 9/05/2017.
[12]
Leal, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto. Rio de Janeiro, Editora
Forense, 1948.
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