Por Jorge Folena
Em
diversas oportunidades tenho ressaltado que o direito ao exercício de quaisquer
liberdades tem limites, pois não pode o seu titular ofender ou prejudicar a terceiros,
uma vez que a liberdade de um indivíduo termina quando se inicia a do outro.
Dito
isto, as ofensas disparadas pelo deputado Daniel Silveira (PSL /RJ), por meio
das suas redes sociais, contra os ministros do Supremo Tribunal Federal e o
próprio tribunal, atingiram a honra e a imagem da Corte Constitucional e
representam grave ameaça à ordem democrática.
Pois
tais manifestações são incompatíveis com o exercício do cargo parlamentar e não
estão acobertadas pela imunidade, na medida em que não foram proferidas em
atividade inerente ao exercício do mandato. A esse respeito, há diversas decisões
do Supremo Tribunal Federal, como a seguir demonstramos:
“... o fato de o parlamentar estar na Casa
legislativa no momento em que proferiu as declarações não afasta a
possibilidade de cometimento de crimes contra a honra, nos casos em que as
ofensas são divulgadas pelo próprio parlamentar na Internet. (...) a
inviolabilidade material somente abarca as declarações que apresentem nexo
direto e evidente com o exercício das funções parlamentares. (...) O
Parlamento é o local por excelência para o livre mercado de ideias – não para
o livre mercado de ofensas. A liberdade de expressão política dos
parlamentares, ainda que vigorosa, deve se manter nos limites da civilidade.
Ninguém pode se escudar na inviolabilidade parlamentar para, sem vinculação
com a função, agredir a dignidade alheia ou difundir discursos de ódio,
violência e discriminação. [PET 7.174, rel. p/ o ac. min. Marco Aurélio, j. 10-3-2020, 1ª T, Informativo 969.] “In casu, (i) o parlamentar é acusado de incitação ao crime de
estupro, ao afirmar que não estupraria uma deputada federal porque ela ‘não
merece’; (ii) o emprego do vocábulo "merece", no sentido e contexto
presentes no caso sub judice, teve por fim conferir a este
gravíssimo delito, que é o estupro, o atributo de um prêmio, um favor, uma
benesse à mulher, revelando interpretação de que o homem estaria em posição
de avaliar qual mulher ‘poderia’ ou ‘mereceria’ ser estuprada. (...) In
casu, (i) a entrevista concedida a veículo de imprensa não atrai
a imunidade parlamentar, porquanto as manifestações se revelam estranhas ao
exercício do mandato legislativo, ao afirmar que ‘não estupraria’ deputada
federal porque ela ‘não merece’; (ii) o fato de o parlamentar estar em seu
gabinete no momento em que concedeu a entrevista é fato meramente acidental,
já que não foi ali que se tornaram públicas as ofensas, mas sim através da
imprensa e da internet; (...) (i) A imunidade parlamentar incide quando
as palavras tenham sido proferidas do recinto da Câmara dos Deputados....” [Inq 3.932 e Pet 5.243, rel. min. Luiz Fux, j. 21-6-2016, 1ª T, DJE de
9-9-2016.] “A
imunidade parlamentar material, estabelecida para fins de proteção
republicana ao livre exercício do mandato, não confere aos parlamentares o
direito de empregar expediente fraudulento, artificioso ou ardiloso, voltado
a alterar a verdade da informação, com o fim de desqualificar ou imputar fato
desonroso à reputação de terceiros. Consectariamente, cuidando-se de
manifestação veiculada por meio de ampla divulgação (rede social), destituída
(...) de relação intrínseca com o livre exercício da função parlamentar,
deve ser afastada a incidência da imunidade prevista no art. 53 da CF”. [Pet
5.705, rel. min. Luiz Fux, j. 5-9-2017, 1ª
T, DJE de 13-10-2017.] Assim,
não há dúvida sobre o afastamento da imunidade parlamentar no caso em análise,
porque o deputado não estava no exercício de suas funções, além de ter atuado
de modo inteiramente incompatível com o cargo para o qual foi investido,
devendo ser severamente punido por seus pares, por quebra do decoro, e depois
submetido às devidas responsabilidades cível e criminal. Com
efeito, mesmo que se encontrasse no âmbito do exercício das suas funções no
Parlamento naquele momento, tendo em vista a forma como se expressou o
referido deputado, o seu ato também não estaria protegido pela imunidade,
porque, ao defender instrumento empregado pela última ditadura (Ato
Institucional número 5/1968), atacou diretamente a Constituição e violou o
Estado Democrático de Direito. A
imunidade existe para assegurar aos parlamentares proteção contra abusos e
ameaças que possam ser desferidos contra eles por outros poderes, e não para
que eles possam incentivar práticas antidemocráticas como torturas, assassinatos,
sequestros e desaparecimentos de pessoas, como os cometidos pelas ditaduras
brasileiras. Nestes
casos, o parlamentar deve ser imediatamente processado, julgado e cassado
pela Comissão de Ética, de modo a não se permitir também que caiam no esquecimento
os males promovidos por perversas ditaduras. Manifestações
como a do deputado fazem apologia de comportamentos proibidos pela
Constituição, a exemplo também dos crimes de ódio, decorrentes de discriminação
racial, de origem, gênero, opção sexual e toda e quaisquer formas de
preconceito. Indivíduos
com este desnível ético não podem fazer parte da vida pública, na medida em
que a política é a arte de saber lutar e se expressar com respeito, mesmo
diante das diferenças. E não se esqueça: foi este parlamentar que desrespeitou
a memória de Marielle Franco, que lutava pelos Direitos Humanos, em defesa
dos mais pobres e vulneráveis. Entretanto,
a prisão do mencionado deputado, da forma que se deu, nos autos de um
“inquérito” em curso no Supremo Tribunal Federal, sem embasamento
constitucional, é muito preocupante. Isto
porque não é papel do Poder Judiciário agir por conta própria, sem provocação
da parte legítima para requerer o pronunciamento judicial. É
certo que devem ser tomadas medidas duras contra qualquer pessoa que agrida a
honra dos indivíduos e ameace as instituições políticas, pondo em risco a
ordem constitucional, diariamente violentada desde que a Presidenta Dilma Rousseff
sofreu o indevido impedimento que gerou o caos que hoje vivemos no país, agora
representado pelo governo em curso. Examinando as considerações do ministro relator do “inquérito”,
Alexandre de Morais, vê-se que o requisito constitucional que permitiria a
prisão de parlamentar (ou seja, a prática de crime inafiançável), não ocorreu
no caso do deputado Silveira, pois o Ministro Alexandre considerou que “constitui crime inafiançável e imprescritível
a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem
constitucional e o Estado Democrático”, o que não se deu na situação em
exame. Embora as manifestações de Silveira, sem nenhuma dúvida, caracterizem
ameaça à ordem constitucional e ao Estado Democrático de Direito, violando a Constituição.
Ocorre que interpretações distorcidas têm sido empregadas
desde o vale-tudo do julgamento do “mensalão” pelo Plenário Supremo Tribunal Federal,
quando optaram por estabelecer a teoria do “domínio do fato”, indevido numa
ordem democrática. Essas distorções da lei, que continuaram nos julgados
da draconiana operação “Lava jato”, comandada por Sérgio Moro e Cia, são
preocupantes, pois estão demolindo a ordem constitucional e democrática no
Brasil e, sem dúvida, possibilitaram a eleição de figuras como Bolsonaro, Daniel
Silveira e outros, que defendem ditaduras, posse indiscriminada de armas e
ações violentas contra seus opositores. Assim, a reação da Câmara do Deputados (feita de
modo apressado, por meio de projeto de Emenda à Constituição para blindar a
imunidade parlamentar contra prisões que possam ser arbitrárias), apresenta-se
como forma de estabelecer um ponto de equilíbrio das forças políticas contra os
abusos da politização da justiça, que tem imposto violações sistemáticas à
Constituição, por meio de interpretações judiciais casuístas, como observado
no julgamento do habeas corpus do pedido de reconhecimento da
presunção de inocência do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva,
ocorrido em abril de 2018, quando a maioria do Tribunal cedeu a coação do
Alto Comando do Exército, representado pelo General Eduardo Villas Boas. Por isso, devemos ser intransigentes na defesa da Constituição e não podemos
bater palmas quando as violações ao Texto Maior são cometidas contra nossos
opositores e pessoas que não admiramos, sob pena de nos sujeitarmos ao efeito
Orloff (“eu sou você amanhã”),
quando o abuso que hoje praticam contra “eles” for contra “nós e os nossos”. Assim, vejo com naturalidade o encaminhamento feito pela Câmara do
Deputados, embora a imprensa insista em denegrir e apresentar com falsos
argumentos moralistas, alegando que os malfeitores irão se beneficiar da
blindagem da imunidade parlamentar. Ora, ora, os malfeitores sequer deveriam estar no Parlamento! Mas eles
estão, porque os mesmos que ora os atacam com argumentos moralistas financiaram
suas campanhas eleitorais e contaram com o seu apoio para aprovar leis contra
a população e os interesses do país, de modo a beneficiar os muito ricos que
compõem a classe dominante e agradar ao seu deus, o famigerado mercado. Então, onde estavam os moralistas da imprensa e da representação
política, quando indivíduos em cumprimento de mandato eletivo declaravam-se
publicamente favoráveis à tortura, dedicavam seu voto pela indevida cassação
de Dilma Rousseff ao homem que a teria torturado e conclamavam pelas redes
sociais que seus apoiadores procedessem à invasão armada da casa parlamentar?
Onde estavam? Na verdade, desde que todos esses grupos se uniram para promover
o desmonte do Brasil, tudo aqui é feito com muito cinismo! |
Comentários
Postar um comentário