O juízo final de Michelangelo
Por Jorge Folena
Nos últimos anos dediquei-me a investigar o mecanismo da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), inclusive tendo tido a oportunidade de participar do Dicionário de História Militar do Brasil (1822-2022)[1], com o verbete “Garantia da Lei da Ordem, o artigo 142 da Constituição e a tutela militar”.
Esclareci que a garantia da lei e da ordem é uma invenção jurídica de origem monárquica, como forma de reação aos movimentos liberais do Século XIX, e foi introduzida no Brasil por Pedro I, na Constituição outorgada de 1824.
Lembro que “um dos três erros fundamentais da Constituição de Weimar” foi permitir que o instituto da GLO, “uma herança da Constituição do Império”, fosse transposto para a ordem republicana, e foi um dos motivos que possibilitou a ascensão do nazismo na Alemanha, a partir de 1933.
No caso brasileiro, com a Proclamação da República, os militares conseguiram manter a GLO na Constituição de 1891 e em todas as demais constituições, até a atual, de 1988, onde está prevista no artigo 142.
Por isso os militares se consideram os “tutores da nação” brasileira, uma vez que podem ser convocados pelos poderes da República, por meio de GLO, para debelar crises institucionais ou convulsões sociais, quando as forças de segurança pública tenham se revelado incapacitadas para resolver.
Por força desta previsão constitucional (que vem se repetindo em todas as constituições republicanas), foi criado o mito de que os militares exercecem um “poder moderador”, que pode ser exercido sobre os demais poderes da República, como fazia o imperador, no período monárquico[2].
Nos últimos anos, o país vivenciou a ascensão descarada do movimento fascista, cujos integrantes, em diversas oportunidades, pediram ao ex-presidente que convocasse a GLO, prevista no artigo 142 da Constituição, a fim de provocar uma intervenção militar, o que infelizmente culminou com o 8 de janeiro de 2023, quando se tentou um golpe de estado no Brasil, com muitos militares diretamente envolvidos, conforme está sendo apurado nas diversas investigações em curso.
Diante do atual cenário, em que os militares se encontram bastante enfraquecidos, e de modo nunca visto antes na história republicana, nasceu a oportunidade para a revisão da redação do artigo 142 da Constituição, a fim de se extinguir a GLO e, deste modo, ser posto um fim ao famigerado mecanismo monárquico, transposto indevidamente para a República, que tem alimentado o mito de que os militares são os “tutores” do país, quando seu papel constitucional deveria estar circunscrito à defesa contra ameaças estrangeiras, caso efetivamente ocorram.
Todavia, o governo, ao invés de propor o fim da GLO (tema que, pelo visto, os militares consideram inegociável, repetindo o comportamento do Ministro do Exército Leônidas Pires na constituinte de 1987/1988), encaminhará proposta de emenda à constituição apenas para impedir a participação de militares em cargos públicos, como estratégia para forçar uma “neutralização política” dos integrantes das Forças Armadas.
Na verdade, o governo perde a oportunidade de consertar esse grave erro e ainda passa a ideia de que está a estimular um “acordão” com as Forças Armadas, de modo a poupar o alto comando, que se revelou incapaz de enfrentar as ameaças permanentes promovidas pelo governo do anterior presidente da República, que se dizia representante dos militares e de suas famílias e defendia a ditadura de 1964-1985, com todos os seus valores equivocados e antidemocráticos.
Espero que os políticos do país tenham a necessária maturidade para compreender a importância do período histórico que estamos vivendo e não façam mais nenhum acordo no sentido de anistiar os que atentaram contra a democracia, pois só por esse caminho sejamos capazes de superar o fascismo que nos ronda de perto.
Por isso, reitero que não basta impedir os militares de assumirem funções no governo. É primordial extinguir a GLO, extirpando-a para sempre da redação do artigo 142 da Constituição, pois somente assim daremos fim ao mito da “tutela” dos militares.
[1] TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos (et al). Dicionário de História Militar do Brasil (1822-2022), vol. I. Rio de Janeiro: Editora Autografia/UDUPE/Editora UFRJ, 2022, p. 509-513.
[2] O ministro Luiz Fux, ao conceder a medida liminar na ADI, 6.457, manifestou que: “a missão institucional das Forças Armadas (...) não acomoda o exercício de poder moderador entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.”
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