O juízo final, Michelangelo
Por Jorge Folena
Existe na América Latina uma infeliz tradição, que consiste na colaboração direta ou indireta dos militares nos variados golpes de Estado que atingiram nossos países, tendo essas corporações participado ativamente de regimes antidemocráticos. Um exemplo mais ou menos recente foi o ocorrido em 2019 na Bolívia, quando os militares se omitiram de assegurar o regime constitucional e abriram caminho para o afastamento do presidente legitimamente eleito, antes do término do seu mandato.
Em abril de 2018, observamos quando o então Comandante do Exército Brasileiro, General Eduardo Villas Boas, por meio da sua conta no Twitter, ameaçou o Supremo Tribunal Federal, caso concedesse ordem de habeas corpus em favor do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva e lhe assegurasse, naquela oportunidade, o direito constitucional de presunção de inocência para participar da eleição presidencial daquele ano, cujo vencedor foi Jair Bolsonaro, representante da extrema direita apoiado pelos militares.
Em muitos países do continente sul-americano, os militares são vistos como forças pretorianas sempre prontas para a defesa dos interesses patrimoniais da classe dominante, pois, por terem uma vida de camaradagem de caserna, colocam-se num grande distanciamento social das camadas populares, de onde são recrutados.
Para camuflar o perfil autoritário e antidemocrático decorrente de sua formação, os militares costumam vestir a capa de “defensores do interesse nacional” e, deste modo, justificam violações à ordem democrática e constitucional, que são jogadas “às favas”, sem quaisquer “escrúpulos de consciência”, como ocorreu na reunião que decidiu pela implantação do Ato Institucional número 05, de 13 de dezembro de 1968.
O “interesse nacional” que os militares dizem defender sempre se revelou débil e os interesses estrangeiros têm prevalecido em diversas oportunidades, conforme vimos em 2019, com a entrega da Base Aeroespacial de Alcântara pelo governo do ex-presidente inelegível, por eles apoiado.
O falso argumento do “interesse nacional” também serviu para justificar a implantação da ditadura militar de 1964-1985, contra o fantasma da ação comunista internacional, ideias repetidas pelo ex-presidente inelegível na reunião com seus ministros em julho de 2022, tornada pública por decisão do ministro Alexandre de Morais.
Além disso, os militares participaram do golpe do impeachment de 2016 contra a Presidente Dilma Rousseff, cujos efeitos sobre a democracia brasileira são percebidos até hoje, na medida em que toda a narrativa construída para justificar o afastamento ilegítimo resultou num aumento absurdo da pobreza e da concentração de renda e culminou na destruição das estruturas do Estado pelos governos autoritários de Michel Temer e Bolsonaro.
No Brasil, desde o período republicano, iniciado em 1889, os militares têm sido agentes atuantes na política, assumindo diretamente o poder no final do regime imperial (1822-1889) e participando e colaborando com a derrubada de governos civis, como ocorreu em 1930 (Washington Luís), em 1945 (Getúlio Vargas), em 1964 (João Goulart) e em 2016 (Dilma Rousseff).
Além disso, há registros de atuação das forças militares brasileiras em combate direto e de maneira desproporcional contra a população civil, a exemplo do que ocorreu nos massacres da “guerra de Canudos” (1896-1897), na “guerra do Contestado” (1912-1916), no “caldeirão do Santa Cruz do Deserto” (1937) e durante o regime de 1964-1985, em que civis foram presos, torturados, desaparecidos e mortos.
Fiz este introito para afirmar que a história das FFAA no Brasil não é marcada por respeito à legalidade, mas sim aos interesses mais atrasados da classe dominante, sendo incapazes de se colocarem na defesa do povo brasileiro e até mesmo da Constituição e da instituições políticas, como está sendo comprovado nas investigações sobre a tentativa de golpe perpetrada pelo ex-presidente, com apoio de muitos militares de alta patente e civis, reunidos numa perigosa organização criminosa, como explicitado na decisão proferida pelo Ministro Alexandre de Morais, nos autos da Petição 12.100/DF.
Digo isto com base na leitura das 135 páginas da decisão proferida pelo Ministro Alexandre de Morais e tendo assistido, na íntegra, à gravação (1:33:19) da reunião do ex-presidente, inelegível e agora indiciado, com seu ministério em julho de 2022.
Sem dúvida, devem ser assegurados o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa e a presunção de inocência a todos os indiciados até agora relacionados na decisão judicial. No entanto, pelas provas em poder da polícia, inclusive pelo conteúdo da gravação da mencionada reunião, que veio a público com as diversas manifestações ali empregadas com clara intenção dolosa, é muito provável que os participantes da organização criminosa, constituída para uma tentativa de golpe de estado e de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, sejam condenados para o bem do Estado brasileiro e para que nunca mais se repitam tentativas desta natureza no país.
Porém, para que tais aventuras não voltem a ocorrer, jamais, é preciso apontar que os atos criminosos que culminaram no 8 de janeiro de 2023, que atentaram contra a Constituição, a República e as instituições democráticas do Estado brasileiro, somente foram possíveis por culpa das Forças Armadas, cujos comandantes tinham pleno conhecimento da tentativa de golpe engendrada pelo ex-presidente e sua organização criminosa, mas nada fizeram; omitindo-se de dar voz de prisão aos criminosos e escondendo da opinião pública e das instituições a prática de gravíssimos delitos contra o país, desenvolvidos há meses, de forma quase sorrateira.
Circulou no final de agosto de 2023 (se não me falha a memória) a notícia de que o Tenente Coronel Mauro Cid teria feito delação premiada e que, dentre as informações prestadas, citou uma reunião em que o ex-presidente teria apresentado um plano de golpe de Estado aos comandantes das três forças militares, sendo que o comandante da Marinha na oportunidade (Almir Garnier) teria “anuído com a proposta de golpe de Estado, colocando suas tropas à disposição do Presidente”, ao passo que os comandantes do Exército (general Freire Gomes) e da Aeronáutica (brigadeiro Baptista Júnior) se recusaram a aderir.
A referida delação foi agora confirmada por meio da decisão do ministro Alexandre de Morais e foi apurado ainda, na investigação em curso, que o ex-ministro e general Braga Neto assim se manifestou: “Meu Amigo, infelizmente tenho que dizer que a culpa pelo que está acontecendo e acontecerá é do Gen. FREIRE GOMES. Omissão e indecisão não cabem a um combatente” (...) “Senta o pau no Batista Júnior. Povo sofrendo, arbitrariedade sendo feita e ele fechado nas mordomias. Negociando favores. Traidor da pátria. Daí para frente. Inferniza a vida dele e da família.”
Ou seja, os três ex-comandantes das FFAA sabiam da existência de um golpe de Estado em curso, sendo que o da Marinha anuiu ao delito, enquanto os outros dois, do Exército e da Aeronáutica, não aderiram, mas se omitiram em denunciar a ação criminosa em curso, liderada pelo ex-presidente, com a participação de vários militares e civis.
Na decisão do ministro Alexandre de Morais consta que Braga Neto teve “forte atuação inclusive nas providências voltadas à incitação contra os membros das Forças Armadas que não estavam coadunadas aos intentos golpistas, por respeitarem a Constituição Federal”.
Ocorre que os comandantes do Exército (Freire Gomes) e da Aeronáutica (Baptista Júnior) não aderiram ao golpe, mas também não tiveram nenhum respeito à Constituição e às instituições políticas, uma vez que, além de não darem voz de prisão aos golpistas, não denunciaram publicamente os graves delitos que estavam sendo praticados pelo ex-presidente e sua organização criminosa.
Assim, infelizmente, não tivemos comandantes militares efetivamente garantidores e respeitadores da Constituição, imagem que está sendo agora construída por setores das Forças Armadas, de modo a tentar transferir a responsabilidade para alguns CPF(s) de militares e, desta forma, blindar a instituição e prosseguir com sua usual tutela sobre o país.
Não tenho dúvida em afirmar que, se os comandantes do Exército e da Aeronáutica tivessem praticado o seu dever de ofício de denunciar publicamente a proposta de golpe apresentada, não teríamos tido o 8 de janeiro de 2023.
Portanto, ao nos defrontarmos mais uma vez com esses perigosos acontecimentos, cujas raízes se encontram na visão deturpada de determinados setores sobre a real função institucional das FFAA, só podemos concluir que está mais do que na hora de se fazer uma grande e oportuna reforma militar e extinguir de vez com a Garantia da Lei e Ordem, prevista no artigo 142 da Constituição, que não passa de um equívoco a alimentar os fetiches golpistas.
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