Girafa em chama, de Salvador Dalí |
Francisco Teixeira e Jorge Folena*
Após pouco mais de quatro semanas
de inação – exceto pela “batalha de notas de imprensa” entre o Ministério da
Defesa e a Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro – a situação da
(in)segurança da cidade chegou ao seu ponto mais baixo na última semana. O
traficante “Nem” teria decidido resolver uma disputa na Rocinha. Uma comunidade
numa situação privilegiada da Zona Sul/Zona Oeste do Rio de Janeiro, com cerca
de 70 mil habitantes, dividida por luta interna entre dois membros “familiares”
da facção ADA (Amigos dos Amigos), dividida entre a facção da própria esposa do
traficante, Danúbia Rangel – foragida da polícia, mas influente no tráfico
local – e seu preposto e “sucessor” Rogério Avelino da Silva, o “Rogério 157”,
que teria expulsado Danúbia da comunidade e tentado assumir sozinho o controle
da venda de drogas na região.
A disputa entre os “familiares” de
“Nem” teria sido a causa do conflito atual no Rio. Do interior da penitenciária
de segurança máxima, em Porto Velho (RO), “Nem” teria ordenado – inclusive por
áudio de whatsapp que circulou por todo o Rio de Janeiro – a invasão da
Rocinha e a perseguição de “Rogério 157”. Este assumira um papel de “dono da
comunidade”, cobrando taxa do comércio local, controlando a venda de água, gás,
carvão, sinal de tv, além de pedágio de mototáxi, táxi e vans, e serviços de
entrega na Rocinha – claro, tudo isso além do “negócio” principal das drogas.
A comunidade da Rocinha mantinha
até o dia 17 de setembro, quando se deu a invasão e começaram os intensos
tiroteios, uma guarnição de 700 policiais, com uma UPP funcionando desde 2012.
Nessa madrugada, cerca de 140 homens fortemente armados saíram do Morro de São
Carlos, onde também há uma UPP, percorreram cerca de 14 quilômetros pelo Centro
urbano do Rio e iniciaram a invasão da Rocinha. Os policiais de plantão, no São
Carlos, em vários pontos do percurso e na Rocinha, viram todo a mobilização e
nada fizeram – fato admitido pelo próprio secretário de Segurança, Roberto Sá,
48 horas após o início dos enfrentamentos, e confirmado pelo governador “Pezão”
na Globonews, em 22 de setembro de 2017, em cadeia nacional (1). Não houve
previsão, inteligência, contenção ou qualquer forma de proteção prévia da
população de 70 mil pessoas da comunidade, sem luz, água e transporte, reféns
da luta entre as facções rivais da ADA.
Também o Departamento
Penitenciário Nacional, do Ministério da Justiça, não foi capaz de informar
como o traficante “Nem” conseguiu, do interior de uma prisão de “segurança
máxima”, fazer gravações e dar ordens para instalar o caos na cidade distante
3,4 mil quilômetros. A direção da penitenciária e o pessoal em serviço na data
da ação de “Nem” no interior do presídio não foram ouvidos, nem aberto um
inquérito para apurar responsabilidades (2).
Entre 17 e 22 de setembro de 2017,
a cidade do Rio de Janeiro viveu sob intensa tensão e paralisia: na Rocinha,
escolas fechadas, transporte paralisado, moradias invadidas, população
aterrorizada sem luz ou transporte, e uma completa inação das autoridades
locais, ora afirmando serem necessários apenas recursos financeiros da União,
ora solicitando o patrulhamento de 119 pontos da cidade! (3)
Após o paroxismo de uma cidade
literalmente dividida ao meio – a Zona Sul desconectada da Zona Oeste –, com a
população aterrorizada e um governo assediado por processos por corrupção e por
uma brutal falência financeira e de serviços básicos, incluindo salários e
equipamentos e material de segurança – e um macabro recorde de assassinatos de
policiais que já ultrapassa o número de cem pessoas! -, o governo do Rio de
Janeiro “demanda” auxílio ao Ministério da Defesa nos termos do Artigo 142 da
Constituição Federal, denominado “GLO”, para a Garantia da Lei e da Ordem.
Aliás, em vigor na Cidade desde 28 de julho de 2017, logo com tempo suficiente
para a organização de um planejamento e de uma ação de controle e repressão ao
crime organizado no Rio de Janeiro (4).
Após uma manhã inteira de terror,
por volta das 15h30, 950 homens das Forças Armadas (FFAA) entraram na Rocinha.
À noite, o ministro da Defesa,
Raul Jungmann, dirige-se à Nação para explicar as operações em curso. Desde
logo declara “a Rocinha pacificada”, o que será desmentido pelos tiroteios e
vítimas fatais – incluindo crianças – em vários pontos da cidade, irradiando-se
da Rocinha (5). Não contente em fazer uma afirmação tão temerária e açodada, o
ministro parte para um balanço ou análise “político-sociológica” do crime
organizado no Rio de Janeiro, de forma superficial e totalmente equivocada. Na
sua fala, refere-se ao crime organizado como “Estado Paralelo”, equiparando-o
ao Estado brasileiro. Ou seja, conferindo grau de igualdade entre uma
construção jurídico-constitucional emanada da vontade geral da Nação, o Estado,
e um bando organizado para delinquir, no mínimo, por si só tipificado como
crime na Lei 12.850/13 – Art. 24 e no art. 288 do Decreto-Lei
no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 do Código Penal. Ou seja, o ministro
não conseguiu perceber a diferença do longo percurso entre a construção do
Estado de Direito – centrado em Locke, Montesquieu e Thomas Hobbes – e uma
organização de bandidos montada para delinquir. Mais do que isso, de vontade
própria, sem qualquer pressão, o Governo do Brasil, por meio do seu ministro da
Defesa, portanto um porta-voz bastante e autorizado, reconheceu a existência,
em território nacional, de um “ente” Estatal estranho à Soberania Nacional
ocupando território nacional, portando armas e obstaculizando a ação do Poder
Público constituído conforme a “Vontade Geral” da Nação.
Assim, ao contrário do governo da
Síria, que jamais reconheceu o “Califado islâmico” como “Estado” em plena
guerra, ou Israel, que se recusa a reconhecer a “Autoridade Palestina” como um
“Estado” de pleno direito, o ministro da Defesa do Brasil, do nada, sem
qualquer necessidade, declarou em cadeia nacional que um bando de criminosos –
a saber, 140 homens armados – constituíam “um Estado Paralelo”. Além disso, na
mesma fala, concluiu que estamos “em guerra”, criando uma situação de “direito
internacional”: um “Estado” com o qual “estamos em guerra” ocupando partes do
território nacional. Não ocorreu ao ministro da Defesa denominar o crime
organizado de “poder paralelo”, de “poder usurpador”, e a luta contra o crime,
de simplesmente “combate”. Talvez empolgado pelas metáforas do cargo,
lançou-nos numa guerra que transforma quadrilhas de criminosos num “poder
estatal”.
Essa seria exatamente uma grande
vitória para as FARCS que o governo da Colômbia sempre se recusou a reconhecer.
Nós o fizemos em pouco mais de oito horas “de guerra”. Como se não bastasse o
reconhecimento, na mais alta instância da República, de um “ente” estatal em
guerra no território brasileiro –, não ocorreu ao ministro da Defesa que o
narcotráfico possa ser um “poder paralelo”, jamais um “Estado”, uma organização
que usurpa poderes do Estado legal-racional, como estabelecido por Max Weber, e
por isso mesmo uma organização criminosa que disputa o monopólio legal da
violência com o único ente de Direito a exercer tal recurso em todo o
território nacional, o Estado Soberano brasileiro –, o Ministro avançou. Fez,
“loquitur sine modo”, graves afirmações. Afirma estar preparado para dispor de
todos os meios do ministério para enfrentar o “Estado Paralelo”, que então
merece uma definição: [temos os meios] “… para enfrentar o estado paralelo, que
é o estado que foi capturado pelo crime organizado” (6).
Ora, quais as “partes” ou
“instituições” do Estado brasileiro que foram “capturadas” pelo crime organizado?
Nenhuma explicação, nada. Apenas uma nuvem de desconfiança para a população:
sua Polícia, sua Justiça, sua Administração, ou seriam seus próprios dirigentes
que teriam se unido ou sido capturados pelo crime organizado para formar o
“Estado Paralelo”? Ou talvez o Ministério da Justiça, que não consegue explicar
como “Nem”, numa Penitenciária de Segurança Máxima em Porto Velho, comanda o
tráfico no Rio de Janeiro?
Em suma, estaríamos, conforme a
análise sociopolítica do Ministro da Defesa, vivendo no país a existência de
dois Estados – como na teoria leninista de poder dual, no qual o Estado
revolucionário emerge e engloba o velho poder, aplaudiria Mao ou Marighella — ,
e as instituições já foram “capturadas” pelo “Estado narcotraficante”.
Uma simples consulta a ferramentas
do curso de graduação em teoria política, como o Dicionário de Ciência Política
de Norberto Bobbio et alii, pouparia o país e a população de tamanha desilusão
e desalento (7), além de conferir a criminosos comuns, decerto espertos e cruéis,
mas claramente fruto do desmonte do Estado e do deboche das autoridades, o
status de um “ente” político.
Ou então, esperemos que o Ministro
da Defesa demande ao Papa ou à ONU negociações imediatas de paz.
Na mesma semana que afirma a
existência de uma intervenção feita pelo que pensa ser um “estado paralelo”,
numa ação midiática espetacular – sob os olhares passivos e perplexos das
autoridades civis dos governos federal e do Estado do Rio de Janeiro,
mobilizadas num GLO que ele mesmo considerara, no atual formato, inútil, o
ministro se esqueceu de que o Comandante do Exército, em entrevista de
grande repercussão na TV Globo, manifestou a preocupação em resgatar a
soberania nacional e popular, enfraquecidas desde o impedimento de Dilma Rousseff.
Enquanto o ministro da Defesa
reconhece um “Estado Paralelo” sob o comando de narcotraficantes que se
ramificam nas diversas estruturas do poder, o Comando do Exército revela a
necessidade urgente de restaurar o Estado de Defesa, perdido devido ao
esfacelamento das instituições políticas tradicionais do Estado de Direito,
duramente aviltado. Estas instituições viraram as costas para o povo
brasileiro, que está sendo arrochado com o aumento assombroso do desemprego e
do custo de vida, e perdendo a esperança de lutar pelo desenvolvimento soberano
do seu país. Além disso, os cidadãos estão sendo jogados uns contra os outros,
mediante a manipulação, inclusive midiática, de questões de caráter religioso
e/ou moral, como as ações patrocinadas até mesmo por esse “Estado paralelo” –
igrejas, facções políticas, ONGs, mídias ocultas, tudo financiado sabe-se lá
como -, que tem utilizado traficantes de drogas para disseminar o ódio contra
umbandistas e candomblecistas e outros grupos formadores da Nação brasileira.
Por esta razão, é fundamental
resgatar, com urgência, a democracia no Brasil. Para que o povo possa decidir,
como afirmou o Comandante do Exército, o seu destino. Isto porque, sem dúvida,
dados os fatos, as instituições políticas perderam totalmente a legitimidade e
não dispõem mais de autoridade para continuar no comando da Nação, uma vez que
já admitem a existência de um “Estado Paralelo”.
O que não se pode mais aceitar é
que continuemos sob a intervenção de um governo e de um Congresso tomados por
graves acusações de desmandos e desrespeito ao erário e à soberania nacional.
Portanto, é preciso restaurar com urgência a argamassa constitucional
originária, para se refundar o Estado e a República brasileira, conforme a
vontade soberana do povo.
Francisco Carlos Teixeira da Silva
é historiador e Jorge Folena é cientista político.
Notas
(1) Ver:
https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/nem-ordenou-invasao-da-rocinha-de-dentro-de-presidio-federal-em-rondonia.ghtml.
. Consulta em 23/09/2017.
(2) Ver: https://oglobo.globo.com/rio/apos-visita-presidio-advogado-de-nem-nega-que-traficante-tenha-ordenado-invasao-rocinha-21844878.
. Consulta em 23/09/2017.
(3) Ver:
https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/ministro-da-defesa-diz-que-falta-planejamento-da-secretaria-de-seguranca-para-atuacao-das-forcas-militares-no-rj.ghtml.
. Consulta em 23/09/2017.
(4) Ver:
https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/temer-assina-decreto-que-autoriza-forcas-armadas-a-atuarem-na-seguranca-publica-do-rio.ghtml.
. Consulta em 23/09/2017.
(5)Ver: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/09/23/rocinha-volta-a-ter-tiroteio-na-madrugada-deste-sabado.htm.
. Consulta em 23/09/2017.
(6) Ver:
https://g1.globo.com/pernambuco/noticia/ministro-da-defesa-afirma-que-forcas-armadas-estao-a-disposicao-do-rio-de-janeiro.ghtml.
Consulta em 23/09/2017.
(7) Bobbio, Norberto et alii.
Dicionário de Ciência Política. Brasília. Editora da UNB, Verbete “Estado
Contemporâneo”, pp. 401 e ss., v.1, 1997.
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