Pular para o conteúdo principal

SOLIDÃO QUE A LIBERDADE NOS TROUXE

O sono, Salvador Dalí, 1937.

 Por Carlos Eduardo Madureira

Passamos por um momento que as últimas gerações, incluindo a nossa, jamais viram. Um momento de hipérbole dos sentimentos onde nos deparamos encarcerados pela liberdade que sempre tivemos. E, talvez, essa liberdade (por ela mesma ser liberdade) nos permitiu causar alguns danos ao nosso ambiente e, quem sabe, por nossa culpa nos encontramos confinados em nós mesmos ou vitimados pelo desamor que desenvolvemos.
Ouvindo algumas querelas de alunos, familiares e pessoas próximas, veio a mim uma obra clássica, de Gabriel García Marquez, "Cem Anos de Solidão".
O romance narra a história de Macondo, uma cidade (aldeia) fictícia cujo fundador fora José Arcadio Buendía. Tudo começa quando as coisas não tinham nome, indo até a chegada do telefone. Utilizando recursos como o realismo mágico, o autor trabalha temas complexos, tais quais, revoluções, incesto, corrupção e até loucura.
O livro foi lançado em 1967 e é tido como uma obra prima do autor e da literatura moderna no continente latino-americano. Cheia de elementos que fisgam a atenção do leitor, a história é contada de uma maneira impressionante, descrevendo fatos como um comboio carregado de cadáveres, uma população que perdeu a memória, mulheres trancadas por décadas em um local escuro, uma caminhada de vinte e seis meses e a fundação de uma aldeia chamada Macondo.
García Marquez desenvolve a trama ao longo de várias gerações da família Buendía, que parece sempre estar em luta contra a realidade, a qual não lhes é muito propícia e lhes deixa à beira da destruição. A primeira geração desta família é formada por José Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán, que tiveram três filhos: José Arcadio, rapaz forte e trabalhador; Aureliano, filosófico, calmo e introvertido; e Amaranta, que tinha o perfil típico de uma dona de casa. Sem falar em Rebeca, a filha adotiva do casal, que fora trazida da antiga aldeia em que moravam, órfã de pai e mãe. A partir desta família a história continua, unindo as suas histórias de vida às histórias das gerações seguintes.
Em seguida, como se não bastasse, à saga desta família, aparecem ciganos com invenções fantásticas, e muitos e muitos Buendías vão nascendo, a ponto de fazer o leitor perder de vista a árvore genealógica da família. O livro conta desde a ascensão até a queda destas vidas, muito bem representadas pela trajetória de seu fundador, que antes era carismático e vivaz, e acaba se transformando em um louco.
As pessoas nascem e morrem, vão embora e voltam, ou permanecem na aldeia até seus últimos dias. O que possuem em comum é justamente a solidão, que sentem, mesmo vivendo em meio a muitos.
Mas o que o romance tem a ver com o Covid-19 e a situação atual do cenário político brasileiro? Pois bem, como os Buendía, o presidente de nossa nação também possui três filhos, cujas características, por mais que haja (ainda) a liberdade de expressão, reservo-me o direito de não descrever. Nosso José Arcado “Tupiniquim” não desiste de um discurso que vai à contramão do mundo, o que o faz saltar do carisma direto à loucura.
Mesmo assim, goza de um sem número de fãs que o seguem como os ratos do conto O Flautista de Hamelin e o tratam como se fosse o verdadeiro Messias prometido pelos profetas do Antigo Testamento – que veio com a missão de salvar o povo escolhido, nesse caso, os habitantes de Terra Brasilis, da danação eterna. A pandemia noticiada, estudada por cientistas, acadêmicos e temida por países do mundo inteiro, para o signatário (ou profeta) de nossa vila não passa de fake news a fim de tirar o Brasil dos rumos do desenvolvimento e do crescimento econômico.
Como faz falta uma leitura mais atenta de um Victor Nunes Leal ou de um Sérgio Buarque!
Os mandos e desmandos do Inquilino do Planalto (nosso Jair Messias “Salvador Remidor de Todos os Pecados” Bolsonaro) causam, como nos Buendía, confusões e incertezas, onde a insegurança que parte da população sente, torna-se algo, ao mesmo tempo clarividente e incerto. Clarividente porque o Senhor Presidente “é o que é” (sic) e incerto porque nenhuma segurança traz à população.
Enquanto passamos pela solidão físico-emocional – em alguns casos –, e por que não dizer institucional, o Messias Tupiniquim passa por cima de tudo e todos, adubando sua sandice em terrenos férteis de estultícia a fim de produzir mais frutos da insanidade que lhe é própria e contamina (com discursos contraditórios e cheios de desdizeres), tanto quanto o inimigo invisível que o mundo luta para derrotar e, para isso, esse mesmo mundo busca dentro de si uma humanidade que parecia há tempos perdida.
Tudo passa. Nada nessa vida é permanente. Tudo é efêmero. Afinal, como já dizia O Poetinha, "a gente já nasce e começa a morrer". Temos perdas, tanto materiais como imateriais (o tempo que não utilizamos com qualidade ou não sabemos como utilizá-lo, por exemplo), ficamos tristes e sentimos desalento.

O futuro é incerto, justamente porque a vida é imprecisa, mas devemos procurar manter o curso da nau na direção traçada, mesmo em mar bravio como este em que navegamos. O certo é que por pior que nós, raça humana, sejamos, não há nada mais perfeito na criação ou na evolução de nossa espécie e, somente esforço e ajuda mútua de nós mesmos nos distanciam um pouco da solidão. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

SEQUESTRO DAS NAÇÕES PELO CAPITAL

Foto de Aly Song/Reuters O jornalista Andy Robinson, em seu livro “Um repórter na montanha mágica” (Editora Apicuri, 2015), revela de que forma os integrantes do exclusivo clube dos ricos de verdade comandam a política universal, a partir da gelada Davos, e patrocinam a destruição de nações inteiras para alcançar seus objetivos econômicos particulares. Muito antes que alguns cientistas sociais cunhassem a expressão “tropa de choque dos banqueiros”, ao se referirem ao grupo considerado como classe média, Robinson desvendou como aqueles menos de um por cento da população universal manipulam sem qualquer piedade os outros noventa e nove por cento, inclusive promovendo ações sociais de suposta bondade, que contribuem para aumentar e perpetuar a miséria entre os povos. Ao falar sobre as mencionadas ações caritativas, patrocinadas por bilionários como Bill Gates e o roqueiro Bono da banda U2, Slavoj Zizek rotulou seus realizadores   de “comunistas liberais”, que manipulam org...

Superação do fascismo no Brasil

A nau dos loucos de H. Bosch Por Jorge Folena   Infelizmente, as instituições têm normalizado o fascismo no Brasil. E foi na esteira dessa normalização do que deveria ser inaceitável que, na semana passada circulou nas redes sociais (em 02/07/2024) um vídeo de treinamento de policiais militares de Minas Gerais, em que eles corriam pelas ruas cantando o refrão “cabra safado, petista maconheiro”. [1] O fato configura um absurdo atentatório à Constituição, pelo qual todos os envolvidos (facilmente identificáveis) deveriam ter sido imediatamente afastados das suas funções, inclusive sendo determinadas prisões disciplinares, e, em seguida, sendo processados administrativa e criminalmente.  Outro caso esdrúxulo foi o de um desembargador do Paraná, que em plena sessão de julgamento, não teve qualquer escrúpulo em derramar toda a sua misoginia, ao criticar o posicionamento de uma mulher (o caso analisado no tribunal era de uma menina de 12 anos, que requereu medida protetiva contra a ...

O país ingovernável

  Por Jorge Folena   No dia 27 de julho de 1988, o ex-presidente José Sarney, com certo tom de ameaça, dirigiu-se aos constituintes, em cadeia nacional de rádio e televisão, para afirmar, ao longo de vinte e oito minutos, que o texto constitucional que estava para ser aprovado deixaria “o país ingovernável”.  Na verdade, José Sarney manifestou na ocasião os interesses mais atrasados da classe dominante brasileira, que entendia que o reconhecimento dos amplos direitos sociais inseridos na Constituição brasileira de 1988 teria um grande impacto sobre o orçamento geral da União, controlado para satisfazer apenas os interesses dos muito ricos, deixando os pobres entregues à própria sorte. É importante lembrar, por exemplo, que, antes da Constituição de 1988 não existia o sistema único de saúde com atendimento universal para todos os brasileiros.  E o presidente Sarney, com o velho e surrado argumento, afirmava que o novo texto constitucional representaria um desencorajam...