Por Jorge Folena
O atual líder do governo de extrema
direita do Brasil, que foi ministro da saúde do ilegítimo governo de Michel
Temer, manifestou quase em tom de deboche que a Constituição de 1988 somente
prevê direitos para os cidadãos. E por isso, numa jogada aventureira, feita sob
medida para testar as reações, lançou a ideia da convocação de uma nova
constituinte, com o propósito claro de se aproveitar do processo revolucionário
popular em curso no Chile e na vitória do Movimento ao Socialismo na Bolívia, ambos
construídos por autênticas forças progressistas, ao contrário do que se passa
hoje no governo do Brasil.
A manifestação do referido
parlamentar é muito semelhante à externada pelo general vice-presidente,
durante a campanha eleitoral de 2018, quando afirmou que no Brasil há muitos
direitos e poucos deveres, referindo-se a toda a legislação de proteção da
classe trabalhadora, construída ao longo de décadas e conquistada mediante muita
luta, que os governos de Temer e Bolsonaro estão destruindo, sem qualquer pudor.
Por isso, tal proposta está a serviço do retrocesso político e social, que nada
tem de revolucionário para justificar a convocação de um processo constituinte.
É preciso esclarecer que uma
constituinte originária, para fundar um Estado, somente deve ser convocada
diante do quadro de ascensão de uma nova ordem política, a exemplo do que se sucedeu
no Brasil, a partir de 1985, com o fim do regime ditatorial de 1964-1985,
quando se impôs a ruptura da antiga ordem autoritária comandada pelos militares,
a fim de restaurar a democracia e os direitos humanos.
Na verdade, não é o que se passa
agora no Brasil, com o atual governo apoiado pelos militares, mercado
financeiro, agronegócio, pastores pentecostais, negacionistas etc. A mesma
classe dominante, que defende descaradamente o estado de exploração e destrói a
democracia e os direitos sociais, através de seus representantes no parlamento,
lança a ideia de uma constituinte, sem respaldo nem legitimação pelas forças
populares; em mais uma jogada de cima para baixo, própria de um regime
autoritário.
Com efeito, esse mesmo tipo de
poder constituinte originário, de natureza puramente retórica, que de tempos em
tempos é imposto ao país pelos que se encontram no poder, foi estampado na
justificativa do Ato Institucional número 1/1964, quando os golpistas da
ocasião se diziam investidos (quase como deuses) de um poder constituinte e
assim afirmavam: “Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças
Armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representam o Povo e em seu nome
exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o único titular.” (sic)
Ressalte-se que tudo aquilo não
passou de uma construção racional e foi apenas uma autoproclamação, porque
não houve revolução popular nem conduziu
à edificação de um novo país/estado.
Ao contrário, foram retiradas as
liberdades individuais e imposta uma
ditadura que durou vinte e um anos, ao longo dos quais se aprofundou a recessão econômica, a população empobreceu
ainda mais e houve farta repartição de infelicidade por todos os segmentos,
sendo o país, ao final, devolvido às forças civis com a economia esfacelada,
com uma hiper-inflação que corroía os salários e só promovia ganhos reais para
os que apostavam diariamente na jogatina do mercado financeiro; enquanto os
ricos ganhavam no over-night, os
salários perdiam seu parco poder de pôr comida na mesa dos mais pobres; sem
falar no escabroso registro de desaparecimentos, assassinatos, torturas etc.
Em tudo e por tudo, muito
semelhante ao que está ocorrendo nos dias atuais no Brasil: estamos diante de
um governo saudosista do regime da ditadura civil-militar de 1964-1985, que lança
a esdrúxula proposta de uma constituinte com o específico objetivo de
sacralizar a retirada total de direitos dos trabalhadores e certamente
facilitar a venda, na bacia das almas, do que ainda resta das riquezas do país,
em mais um golpe contra o Brasil, cuja população está empobrecida e precarizada
e com sua juventude sem esperança de futuro.
A proposta contida no golpe da
constituinte pretende o retorno ao passado; quando, na realidade, uma constituinte propõe a construção do
novo, conforme o processo dialético.
Sem dúvida, o golpe do impeachment perpetrado contra a
presidenta Dilma Roussef, em 2016, enfraqueceu muito a autoridade da
Constituição de 1988 e das instituições políticas brasileiras, que colaboraram
diretamente na conspiração contra a carta política que juraram defender;[1]
contudo, um governo e um parlamento que trabalham sistematicamente contra os interesses
dos cidadãos não estão e nunca estarão legitimados para convocar e tentar
instituir uma nova ordem constitucional.
O ataque do líder do atual governo
deve-se ao fato de que na Constituição de 1988 está estabelecido um vasto
programa de direitos humanos, como o Sistema Único de Saúde (que Bolsonaro quer
privatizar), a proteção ao meio ambiente sadio para as gerações presente e
futura (que Bolsonaro e seu ministro do Meio Ambiente sabotam sistematicamente), o direito à
educação pública (que Bolsonaro e seus sucessivos ministros da Educação querem
privatizar), o direito à Previdência Social Pública (que Bolsonaro e Paulo
Guedes querem privatizar), o direito à pluralidade e à diversidade (dos quais
Bolsonaro e seus seguidores debocham diariamente) etc., que são cláusulas
pétreas (que, em tese, não podem ser revogadas).
Na verdade, o que atual governo de
Bolsonaro, dos militares e de Paulo Guedes (representante do mercado
financeiro) deseja é acabar com o Estado brasileiro e todo o sistema de
proteção social.
Porém, querem fazê-lo sem que isto
represente a ruptura da atual ordem exploratória, imposta contra os interesses
da maioria da população, que sequer tem acesso aos direitos previstos na
Constituição, que não foram integralmente implementados pela ação direta da
classe dominante brasileira, que sabota desde o início a nossa Carta Política
porque deseja somente para si o controle e a fruição das riquezas do país, em
desacordo com o que ajustou o Constituinte de 1987/1988, na medida em que a
Constituição é para proteger o povo brasileiro.[2]
É para lutar pela implementação dos
direitos previstos na Constituição de 1988 que nos dedicamos a escrever, toda
semana, em defesa da Constituição, com o objetivo de contribuir para a
emancipação das forças populares, para que a maioria do povo perceba que o Estado
brasileiro somos todos nós, o conjunto da sociedade, e compreenda que juntos somos fortes e capazes
de estabelecer uma nova ordem, fundada na solidariedade, na justiça social e
sem exploração do homem pelo homem!
Por fim, prestamos nossa homenagem
à expressiva maioria do povo boliviano e chileno, que estão se insurgindo
contra a classe dominante (que sempre se apropriou das riquezas pertencentes a
todos) e lutando para construir, em seus respectivos países, um Estado que efetivamente os represente em toda a sua
diversidade e que faça prevalecer a soberania popular.
[1] Jorge Rubem
Folena de Oliveira. Desmanche da Constituição e das Instituições. In Destruição dos princípios liberais:
suicídio da elite brasileira (ensaios e Direito). Letra Capital: Rio de
Janeiro, 2020, p. 79.
[2]
Jorge Rubem
Folena de Oliveira. A Constituição é
para proteger o povo brasileiro. Revista Conjur, 01 jul 2020. Disponível em
https://www.conjur.com.br/2020-jul-01/jorge-folena-constituicao-povo-brasileiro
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