Por Jorge Folena
Tramita no Senado Federal o Projeto de Lei número 5.404/2020, de autoria
do Senador Paulo Paim (PT/RS), que qualifica o homicídio praticado em razão
de preconceito de raça, cor ou etnia e define tais práticas como hediondas.
O referido projeto de lei não é apenas mais uma iniciativa parlamentar
para aumentar no país as penas aplicadas contra os mais pobres e os grupos
subalternos, como tem sido proposto por parlamentares de direita e de extrema direita.
Na verdade, a iniciativa do Senador Paulo Paim (um dos parlamentares mais
progressistas no Congresso Nacional) tem como objetivo tentar evitar a continuação
e o aumento dos assassinatos de crianças, jovens, mulheres e homens negros e índios
no país, na medida em que o imperativo hipotético (externado pela legislação
penal em vigor) não tem sido suficiente para barrar o agravamento dos abusos cotidianos
praticados contra tais grupos, numa sociedade que ainda mantém, em pleno século
XXI, fortes traços coloniais e de subalternidade.
Neste caso, o princípio constitucional do devido processo legal material
(artigo 5º, LIV, da Constituição Federal), representado pela proporcionalidade e razoabilidade,
justifica a adequação e a utilidade da referida medida legislativa, proposta para
qualificar e aumentar as penas contra a prática de homicídios “que possam
ter como pano de fundo a questão racial”, diante de sua gravidade.
O autor do projeto, na sua justificativa, manifesta que:
“A Constituição, no seu artigo 4º, VIII, coloca como um dos princípios do Brasil, nas suas relações internacionais, o repúdio ao racismo. E o artigo 5º, XII, define que a prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.
Nesse sentido o presente projeto de lei regulamenta o mandamento
constitucional num momento em que o Brasil e o mundo se organizam contra o racismo.”
Como demonstrado pelo Senador Paulo Paim, nas razões que levaram à apresentação
do projeto de lei, o Atlas da Violência de 2020 deixa evidente o número crescente
de assassinato de negros no Brasil, onde a vida dos integrantes desse
grupamento social (a “carne negra”) não tem tido qualquer valor.
Infelizmente, as práticas de racismo e de ódio têm sido uma constante no
país, contrariando o objetivo fundamental da República Federativa do Brasil (artigo
3º, IV, da Constituição),
que propõe “promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
É triste constatar que muitos artigos da nossa Carta Constitucional têm sido simplesmente
ignorados e tratados como “letra morta”, a exemplo do artigo 170, que propõe “assegurar
a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.”
Assim, o
racismo que permeia a sociedade brasileira não apenas constitui uma ininterrupta
violação da dignidade humana, princípio fundamental da República Federativa do
Brasil (artigo 1º, III, da Constituição), como segue tirando vidas de pessoas
em situação de fragilidade, como se nada valessem.
Recordo-me que, quando da aprovação da Lei CAÓ (Lei 7.716/89, que define
os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor), muitos disseram, à época,
que era um exagero legislativo, porque o Brasil “não é um país racista nem preconceituoso,
onde todas as raças se misturam”.
Reservas semelhantes foram apresentadas em relação à Lei Maria da Penha (Lei
11.340/2006, que cria mecanismo contra a violência doméstica e familiar contra
a mulher) e à Lei do Feminicídio (Lei 13.104/2015, que qualificou o crime de homicídio
contra as mulheres, por razões da condição do sexo feminino, e incluiu o feminicídio
como crime hediondo).
A sociedade brasileira, como um todo, até hoje não conseguiu atingir o objetivo
de promover o bem comum ou de proporcionar a todos o direito de viver sem sofrer
preconceito ou discriminação.
Em decorrência, as chacinas são constantemente praticadas nas periferias
das grandes cidades e, em todas elas, predominantemente, são mortas pessoas
negras e mestiças, e quase sempre jovens e adolescentes. Os exemplos são muitos,
mas podemos citar as chacinas da Candelária, de Vigário Geral, Parada de Lucas,
Manguinhos, Paraisópolis etc etc, sendo o exemplo mais recente o massacre da Polícia
Civil do Estado do Rio de Janeiro na favela do Jacarezinho; e no campo, onde não
podemos esquecer a chacina de Eldorado dos Carajás, executada pela Polícia Militar
do Estado do Pará, em 17 de abril de 1996.
Além disso, estão sendo assassinados e exterminados os poucos indivíduos
que restaram dos povos originários, conforme denúncias sobre as reiteradas invasões
das reservas indígenas por garimpeiros e grileiros de terras.
Por tudo isso, entendo que o referido projeto de lei não constitui apenas
mais uma iniciativa vulgar para criminalizar ou aumentar as penas aplicadas contra
a classe subalterna e vulnerável; trata-se, isto sim, de uma forma de mostrar
que o imperativo categórico tem falhado e, por isso, impõe-se o aumento das
penas, por meio da qualificação do crime de homicídio, na forma proposta na iniciativa
legislativa.
A propósito, como ressaltou o Senador Paulo Paim, na justificativa do
seu projeto de lei: “Quando defendemos a democracia, temos que falar do
racismo, da discriminação, da violência; quando defendemos a Constituição,
temos que lembrar do genocídio indígena e negro; quando defendemos a paz e a
solidariedade, temos que levantar memoriais aos que, todos os dias, são vítimas
de crimes de morte causados por preconceito de raça, cor e etnia.”
Sendo assim, é uma tentativa de tornar efetivo o princípio fundamental
da dignidade da pessoa humana e materializar um dos objetivos fundamentais da
República, que visa à diminuição do preconceito de cor, raça e etnia e de quaisquer
outras formas de discriminação, pois a sequência de homicídios contra os grupos
subalternos no Brasil tem sido uma constante e lamentável realidade, que se coloca
contra o fundamento maior da Constituição de 1988, que veio para proteger o povo
pobre e sofrido do Brasil, que vem sendo massacrado, humilhado e maltratado
desde o descobrimento.
Comentários
Postar um comentário