ANÁLISE CONSTITUCIONAL DA INTERVENÇÃO FEDERAL: existe desvio de função no emprego das Forças Armadas, na intervenção federal decretada pelo Presidente da República, no Rio de Janeiro?
1) Consideração preliminar:
a eficácia da Constituição de 1988
Tenho
desenvolvido a tese de que a Constituição Federal de 1988 tornou-se exaurida e
ineficaz, a partir do afastamento de Dilma Rousseff da presidência da República
(quando a vontade manifestada no sufrágio foi ignorada), dadas a forma e as
circunstâncias em que transcorreu todo o processo político e jurídico do impeachment,
mediante a manipulação da Constituição para atender interesses casuístas e
derrocar a democracia.
Atacada
frontalmente, a Constituição “cidadã” não foi capaz de assegurar a democracia
nem de manter a estabilidade política no país; em consequência, as instituições
políticas (parlamento e judiciário) também se desmancharam com o impeachment, sem que seus membros tenham
percebido a grandiosidade de seus cargos e/ou o papel que lhes foi delegado
pelo constituinte originário para impedir o caos.
Com efeito, os
membros das instituições políticas (aqui os três poderes da República) promovem
na atualidade a autodissolução de suas funções e impõem, sem pensar, o fim trágico
do Estado brasileiro, que não consegue mais assegurar os objetivos consensuais
do pacto político de 5 de outubro de 1988.
Da
mesma forma que a Constituição brasileira hoje só existe no papel, também as
instituições políticas que nasceram dela não mais dispõem de autêntica
legitimidade e respaldo popular; vale lembrar que foi do espírito da vontade
popular que se acendeu a força nacional que exigiu o fim do regime
civil-militar de 1964-1985, quando cessaram todas as condições de se manter a
ordem anterior.
Na verdade, a
Constituição de 1988 vem sendo esvaziada nos seus propósitos originais desde
governos anteriores, que aprovaram reformas que levaram a termo a defesa da
soberania nacional e dos valores sociais do trabalho e da dignidade humana, como
o fim do conceito de empresa brasileira, o monopólio do petróleo, as reformas
previdenciárias e a privatização generalizada de quase todas as atividades que
eram atribuições do Estado, sem que tenha havido prévia e ampla discussão com a
sociedade.
No atual governo,
atingiu-se o marco para dar fim a quase trinta anos de tentativas de se
constituir, no Brasil, por meio da referida constituição, “uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social.”
Os pilares da
Constituição Federal de 1988 (proteção à soberania nacional, aos direitos
individuais e sociais, representados com grande destaque pelo
fortalecimento dos direitos trabalhistas, vindos simbolicamente da era Vargas)
não estão mais produzindo os efeitos de reconhecimento, como aprovados e
acolhidos no seio da sociedade, a partir do amplo acordo de aceitação política
e social que originou aquele pacto constitucional.
Na teoria
jurídica, tem sido difundida uma corrente de pensamento que busca mitigar a
racionalidade do Direito, transpondo-o, por meio de pura retórica, para uma
categoria de natureza empírica, como fato social. De acordo com esta linha de
pensamento, o aspecto realista do Direito se manifesta mediante o entendimento
firmado pelos tribunais, principalmente os superiores, que julgam em definitivo
as questões constitucionais.
A partir disso,
pela construção da teoria do fato social empírico, o Direito torna-se aquilo
que os tribunais (e especialmente as Supremas Cortes) venham a pronunciar em
caráter definitivo. Essa construção favorece os interesses da hegemonia, que,
pelo consenso, tenta estabelecer uma ordem política imposta de cima para baixo,
executada por burocratas e sem necessidade de qualquer respaldo na soberania
popular, de forma que a máxima “todo poder emana do povo” perca o seu sentido
histórico e finalista.
Por tal razão,
é difundido e massificado por certos meios de comunicação que o século XXI é do
protagonismo judicial; pelas mesmas vias são rebaixadas e desmoralizadas as
instituições políticas, como os parlamentos e os governos, nos quais ainda
resta algum grau de vontade popular capaz de impedir (mesmo que temporariamente,
em anos eleitorais), reformas prejudiciais aos interesses da população, como a da
previdência, apresentada pelo atual governo.
Assim, para a
ordem atualmente em curso, é normal que bancos promovam jantares e eventos
sociais e culturais para juízes; ou que juízes façam protestos e ameaças de
greves visando a manutenção de um benefício por moradia que atenta contra a
moralidade jurídica; ou, então, que juízes possam interferir em atos de
governos, como a concessão de indulto de natal. Em igual situação, que
militares possam estar nas ruas para executar atribuições da polícia, num
nítido desvio de função.
Tudo isto deixa
evidente que não há mais eficácia da Constituição, pois ela proíbe tais
comportamentos, que, no entanto, são tolerados como normais; da mesma forma que
a Suprema Corte aceitou como normal o julgamento de Dilma Rousseff pela Câmara
dos Deputados e depois pelo Senado da República, num nítido desvio de suas
funções e para a persecução de interesses contrários à manutenção da
democracia.
A Constituição
passou a ser manuseada e lida conforme interesses alheios ao espírito
(metafísico mesmo) em que ela foi originada, o que promove o desmanche deste
documento jurídico, destituído de sua eficácia; em consequência, ocorre o mesmo
nas instituições políticas por ela criadas para o funcionamento do Estado
brasileiro.
No cenário
atual, temos juízes que asseguram a manutenção de uma ordem jurídica ilegítima,
que não é a mesma estabelecida pela Constituição de 1988, que deve ser resgatada. Sendo assim, é preciso deixar claro que a suposta ordem
jurídica constitucional, que se alega estar em vigor no país, está sendo usada
tão somente para favorecer interesses contrários ao país e totalmente estranhos
à formação original do pacto político de 1988, que, ao nosso ver, já não mais
existe.
Esta
consideração prévia é necessária, na medida em que, considerando-se a ordem de
1988 (a meu ver já tornada sem eficácia), o resultado final deste trabalho
poderá concluir ser inconstitucional o seu objeto de análise; o que, contudo,
pode não traduzir a realidade dos fatos nem corresponder aos desdobramentos dos
anseios da sociedade brasileira de hoje, que se arriscam a ter menos liberdade,
em substituição a ter mais segurança.
Sob
este aspecto, a Constituição de 1988 não seria a baliza jurídica eficaz para a
solução de um problema que a sociedade brasileira não conseguiu resolver, desde
a saída do regime civil-militar anterior até os dias de hoje, pois as Forças
Armadas estão de volta às ruas para uma função que não é a sua.
Os
constituintes de 1987/1988, ao firmarem o pacto democrático de 1988, tiveram a
preocupação de tentar impedir que este quadro institucional voltasse a se
repetir, mas os sucessivos governos civis, ao não combaterem efetivamente as
causas da violência (limitando-se a combater apenas os efeitos) facilitaram e
incentivaram que os militares fossem para as ruas (mesmo contra a vontade
destes, temos que reconhecer, como manifestou em diversos pronunciamentos
oficiais o atual Comandante do Exército), com a decretação desnecessária de
Garantia da Lei e da Ordem, que não apresentou resultados efetivos, mas serviu
apenas aos interesses políticos dos governantes.
2) A intervenção federal no
Rio de Janeiro:
Por
meio do Decreto 9.288, de 16/02/2018, expedido pelo Chefe do Poder Executivo da
União, foi decretada a intervenção federal da União na área de segurança
pública, com o objetivo de “pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública
no Estado do Rio de Janeiro”, o que, a princípio, deverá durar até 31/12/18;
sendo nomeado como interventor o General do Exército Walter de Souza Braga
Netto, Comandante Miliar do Leste, que estará subordinado diretamente ao
Presidente da República em exercício.
A
intervenção federal em questão chama atenção porque foi direcionada
especificamente para a área de segurança pública (e não para todas as
atribuições do chefe do governo estadual) e por ser o cargo de interventor “de
natureza militar”, e não civil.
Além
disso, em nota emitida no dia 20/02/2018, o Comando Militar do Leste esclareceu
que a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), estabelecida por Decreto em 28/07/2017,
estaria ainda em vigor, não tendo sido revogada pelo decreto de intervenção, e
que a intervenção é federal, e não militar. Ressaltou ainda que os órgãos de
segurança pública estadual estariam funcionando normalmente e que os efeitos da
intervenção seriam percebidos em médio e longo prazo pela população do Rio de
Janeiro.
Diante
deste cenário, é essencial analisar, sob o aspecto constitucional, a referida
intervenção federal, decretada exclusivamente sobre a atribuição do Governador
do Rio de Janeiro na área de segurança pública, quando já se encontrava em
vigor um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), pelo qual as Forças
Armadas estavam atuando em conjunto com as autoridades de segurança pública do
Estado do Rio de Janeiro para preservar a ordem pública. É necessário também verificar
se existe autorização para que Exército, Marinha e Aeronáutica possam atuar
como força policial ostensiva para preservação da ordem pública e
investigativa.
3) Fundação do Estado como
garantidor da segurança e para a preservação da paz social:
Para
migrar de um cenário de guerra e desordem social, existentes num suposto estado
da natureza, a teoria política hobbesiana propôs a fundação do Estado moderno como
agente para estabelecer a harmonia e a paz social e, deste modo, garantir a
ordem e a segurança individual e patrimonial de todos.
De
acordo com esta teoria clássica, os indivíduos devem abrir mão de suas
liberdades e entregá-las ao Estado, representado pelo “príncipe”, que tudo
pode, menos atentar contra a vida dos cidadãos, que têm o direito de reagir contra
as investidas do Poder Público.
Em
momentos de intranquilidade e insegurança, tantas vezes presentes no período
pós-moderno por razões de ordem política, econômica e social, diversos indivíduos
acreditam ser melhor renunciar à sua liberdade individual, desde que lhes seja
assegurada alguma parcela de segurança com relação à sua vida e ao seu
patrimônio.
Como
exemplo disso, na sociedade brasileira atual vários cidadãos expressam, de
forma saudosista, que, a seu ver, era melhor e mais seguro viver no período da
última ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985), pois para eles os governos
chefiados por militares transmitiam a confiança da força e do poder.
A
partir disso, diversos grupos, organizados ou não, têm solicitado às Forças
Armadas uma intervenção na política brasileira, com a esperança de que um
governo militar, fundado na ordem e na disciplina da Caserna, possa trazer ao
país o desenvolvimento e a paz que os civis não lhes têm proporcionado, nos
últimos mais de trinta anos.
Porém,
nos sucessivos governos entre 1964-1985, a atuação política institucional dos
militares provocou graves problemas para as Forças Armadas e deixou questões não
solucionadas que, até os dias atuais, impedem que os militares apresentem uma
ação política mais efetiva, mesmo nos seus respetivos âmbitos de atuação, sendo
difícil para eles lidar até mesmo com a defesa de temas relacionados à sua
atribuição constitucional, a exemplo da soberania nacional, que está sendo
violentada como nunca fora, antes, na história do Brasil.
Por
tudo isto, atribuir uma atuação política institucional às Forças Armadas é
impor um sacrifício duro demais para esta estratégica instituição nacional;
sendo que não cabe aos militares (nem aos magistrados e à burocracia em geral),
como agentes públicos técnicos, darem solução para os muitos problemas
brasileiros, do passado e do presente, ainda não resolvidos.
Com
efeito, a grave crise institucional que acomete o país deverá ser enfrentada
por meio do exercício dos direitos políticos e da atuação da política, mediante
a participação efetiva da população nas diversas formas de expressão do
processo democrático, o único que se tem no momento e que deve ser o
instrumento para promover o reequilíbrio das forças políticas e sociais; que,
em uma democracia, são as únicas que efetivamente podem apontar os caminhos do
desenvolvimento e da inclusão social, necessários para que o país desponte em
sua efetiva importância.
Por
conta das questões apontadas, o atual Comandante do Exército, de forma quase sistemática
e contínua, tem manifestado que os graves impasses políticos brasileiros devem
ser solucionados pelos civis, conforme a ordem constitucional vigente. Entretanto,
tem se observado uma contínua tentativa de se utilizar o poder militar – como
ocorreu em períodos anteriores – para garantir os interesses de grupos
políticos civis que falharam em apresentar soluções para as adversidades
internas, que geram conflitos, falta de perspectivas e a sensação de
insegurança política e social, que faz com que brasileiros sejam jogados uns contra
outros, numa pretensa “guerra” ideológica e de classes.
4) Da intervenção federal
nos Estados:
O
artigo 34 da Constituição prevê que: “A União
não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: I) manter a
integridade nacional; II) repelir invasão estrangeira ou de uma unidade
da Federação em outra; III) pôr termo a
grave comprometimento da ordem pública; IV) garantir o livre exercício de
qualquer dos Poderes nas unidades da Federação; V) reorganizar as finanças da
Unidade da Federação que: a) suspender o pagamento da dívida fundada por mais
de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior; e b) deixar de entregar
aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos
prazos estabelecidos em lei; VI)
promover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial; VII)
assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: a) forma
republicana, sistema representativo e regime democrático; b) direitos da pessoa
humana; c) autonomia municipal; d) prestação de contas da administração
pública, direta e indireta; e) aplicação do mínimo exigido da receita
resultante de impostos estaduais, compreendida
a proveniente de transferência, na manutenção e desenvolvimento do
ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.
A
intervenção constitui uma regra excepcional, pela qual o constituinte
originário permitiu que o Presidente da República, mediante ratificação pelo
Congresso Nacional, pudesse, nas matérias acima destacadas, impor uma limitação
à gestão administrativa dos Estados-membros.
A
intervenção representa uma severa exceção à regra da autonomia federativa das
unidades federadas (Estados, Distrito Federal e Municípios); sendo certo que a
federação se constitui em princípio fundamental e estruturante (artigos 1.o
e 18 da Constituição) da ordem jurídica brasileira, que é “cláusula pétrea”, porque
sequer admite sua eliminação ou redução por meio de emenda à constituição (artigo
60, § 4.o) que seja proposta por constituintes derivados.
Na
questão examinada, a intervenção federal que recaiu sobre o Estado do Rio de
Janeiro foi especificamente para “pôr termo ao grave comprometimento da ordem
pública”, estando relacionada diretamente à área de segurança pública, como
constou no decreto de intervenção.
Ocorreu
que empresas de comunicação social divulgaram imagens de confrontos de
policiais e grupos armados em favelas e vias expressas da Cidade do Rio de
Janeiro, nos dias que antecederam e durante os festejos de carnaval, com várias
cenas de furtos, roubos e saques, inclusive num supermercado no bairro do
Leblon.
Em
decorrência das imagens propagadas pelos canais de televisão, ficou a impressão
de que o Rio de Janeiro é um lugar de extrema insegura e desordem pública.
Associado a isto, o governador do Estado, pressionado pela imprensa, manifestou
que houve falha no planejamento da segurança para o carnaval na Cidade do Rio
de Janeiro.
A
partir disso, o governo Federal decretou a intervenção federal na área de
segurança do Estado, retirando o comando desta atribuição do controle do
governador do Rio de Janeiro até 31/12/2018; e foi nomeado um general do
Exército para o cargo de interventor, de “natureza militar”, como consta no
artigo 2.o, § 2.o do decreto.
O §
1.o do artigo 36 da Constituição Federal dispõe que “o
decreto de intervenção, que especificará a amplitude, o prazo e as condições de
execução e que, se couber, nomeará o interventor, será submetido à apreciação
do Congresso Nacional (...), no prazo de vinte e quatro horas.”
Por
tratar-se de uma regra excepcional de restrição ao princípio federativo, a constituição impõe que o decreto de
intervenção deve ser apreciado pelo Congresso Nacional no prazo de 24 horas, o que foi feito e aprovado pelos
parlamentares; devendo ficar especificada no decreto a sua amplitude, que o Presidente da República em exercício limitou
apenas à área de segurança pública, mantendo as demais atribuições do
Governador do Estado; o prazo da intervenção
foi estabelecido até o final de 2018, tendo sido nomeado um general do
Exército brasileiro, subordinado ao Presidente).
Aparentemente,
observa-se a constitucionalidade do decreto; porém, a intervenção na segurança
pública do Rio de Janeiro, com a finalidade de “pôr termo (fim) ao
comprometimento da ordem pública”, em consequência da falta de planejamento na
segurança pública do Estado, não pode ser atribuída apenas à falha das forças
de segurança do Estado do Rio de Janeiro.
Isto
porque, como reconhecido pelo próprio Comando Militar do Leste (CML), existe uma
Garantia da Lei e da Ordem (GLO) em vigor desde julho de 2017, com os ministros
da Defesa, Justiça e Gabinete de Segurança Institucional encarregados de
auxiliar e realizar um plano integrado de segurança com o Estado do Rio de
Janeiro, mediante o emprego das Forças Armadas, da Força Nacional de Segurança
e da Inteligência do Governo Federal na colaboração e apoio suplementar às
competências constitucionais do Rio de Janeiro.
Ora,
se ocorreu falha na prevenção e no combate à violência ostensiva durante o
Carnaval, gerando insegurança à população, ela não foi causada apenas pelo
despreparo das forças de segurança do Estado do Rio de Janeiro, mas também das
autoridades federais e seus respectivos efetivos, disponibilizados para
garantir a lei e a ordem, em curso desde julho de 2017.
Por
tal razão, não se justifica constitucionalmente a intervenção federal, que
limita a autonomia federativa do Estado, que deveria ser respeitada e
preservada por tratar-se de princípio fundamental da ordem jurídica
constitucional, uma vez que está em vigor uma GLO no Rio de Janeiro, pela qual
foram disponibilizados agentes civis (da Agência Nacional de Inteligência e da
Força Nacional de Segurança) e militares das Forças Armadas para colaborar com
a segurança pública estadual e, deste modo, garantir a ordem pública. Se houve
falha das forças de segurança do Estado, falharam também as federais, que não
se prepararam e nada informaram adequadamente sobre o que poderia ocorrer.
5) Emprego das Forças
Armadas para Garantia da Lei e da Ordem:
A Constituição brasileira diz que: “As Forças Armadas (FFAA) são
instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na
hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da
República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais
e, por iniciativa de qualquer deles, da lei e da ordem.” (artigo 142)
De
acordo com a Constituição, as FFAA têm três missões: 1) a defesa da pátria; 2)
a garantia dos poderes constitucionais e 3) a preservação da garantia da lei e
da ordem (GLO), de forma excepcional.
A
propósito, não se pretende neste trabalho fazer uma análise crítica do
dispositivo constitucional acima, tendo em vista a existência de diversas
restrições acerca do papel de garantia de poderes constitucionais e da lei e da
ordem por parte das FFAA, a representar uma indevida espécie de poder
moderador. Tais atribuições poderiam ser desempenhadas por uma força de
terceiro tipo, como a Força Nacional de Segurança ou uma Guarda Nacional, sem
expor as FFAA junto à população, em casos de eventuais excessos ou acidentes
involuntários, com perda de vidas. A ideia é apenas debater os objetivos aprovados
pelos constituintes, diante do atual quadro de intervenção no Rio de Janeiro.
Por
tratar-se de medida de exceção, que visa garantir o funcionamento das
instituições democrática que possam estar ameaçadas, a GLO somente pode ser
executada com muita cautela e depois de esgotada completamente a capacidade das
forças de segurança (Polícia Federal, Polícia Rodoviária e Ferroviária
Federal, Polícias Civis e Militares e Corpo de Bombeiros Militares), de
acordo com suas respectivas atribuições constitucionais.
Cabe
às forças de segurança da União e dos Estados garantir a preservação da ordem
pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio; não sendo esta missão
das Forças Armadas. O emprego das FFAA deve ser utilizado com muita restrição
em operações internas, sendo a função preponderante destas instituições
militares a defesa da pátria, como forma de garantia da soberania popular e
nacional.
As
FFAA não podem ser destinadas a atuar como força de segurança pública, porque
isto constitui um desvio de suas funções constitucionais e uma usurpação das
atribuições das Polícias Militares, às quais “cabe a polícia ostensiva e a
preservação da ordem pública”, como determina o artigo 144, § 5.o
da Constituição.
Com
efeito, pela orientação constitucional, não é atribuição das FFAA atuar num
cenário de “guerra” urbana contra o tráfico de drogas e de armas.
Por
isso o Comandante do Exército, General Eduardo Villas Boas, afirmou em
entrevista ao Jornal Valor Econômico (de 17/02/2017) que “hoje morrem cerca de
60 mil pessoas por ano assassinadas, cerca de 20 mil pessoas desaparecem no
país por ano, 100 mulheres são estupradas por dia.” Além disso, o General
Villas Boas expressou sua preocupação de comandante, ao constatar que as
intervenções para Garantia da Lei e da Ordem nas favelas do Rio de Janeiro não
produziram resultados concretos de transformação social; pois apenas a
repressão à criminalidade não trará jamais a segurança transformadora, que
somente pode ser alcançada pela ampla garantia de direitos sociais e pela
oportunidade de trabalho com remuneração justa.
Assim,
empregar os militares, por meio de GLO, para intervir em favelas, é utilizar as
FFAA em nítido desvio de suas funções, alheias ao papel de polícia.
5) Polícia Militar como
garantidora da ordem pública:
A
Constituição atribuiu preponderantemente à Policia Militar dos Estados exercer
as funções de polícia ostensiva e garantidora da ordem pública, como previsto
no artigo 144, § 5.o da Constituição.
Porém,
em nenhum documento foi declarado, seja no Decreto de intervenção ou em
qualquer outra manifestação do Governador, que a Polícia Militar do Estado do
Rio de Janeiro, no exercício de suas atribuições constitucionais, está
incapacitada para garantir a ordem pública no Estado.
Ora,
nessas condições, não é razoável se fazer uma intervenção federal para “pôr
termo ao grave comprometimento da ordem pública no Estado do Rio de Janeiro”,
se a Polícia Militar não foi considerada incapacitada ou impossibilitada de
exercer suas funções constitucionais.
Na
hipótese, se o problema da segurança do Estado for a incapacidade não declarada
da Polícia Militar (PM) – como o envolvimento de seus integrantes em casos de
corrupção ou participação em milícia, como manifestou o ministro da Justiça, no
final de outubro de 2017 - , entende-se que mesmo assim não seria necessária a
referida intervenção da União no Estado do Rio de Janeiro, uma vez que, sendo a
PM força auxiliar e de reserva do Exército, como prevê o artigo 144, § 6.o
da Constituição, o Comando Militar do Leste poderia, de alguma forma,
independentemente da GLO em curso, convocar o comandante geral da corporação
para tentar identificar os problemas existentes, tendo em vista a preservação
da ordem pública, e até mesmo exigir explicação sobre a presença da corrupção,
identificada pelos serviços de Inteligência.
Além
disso, a intervenção federal foi realizada sobre toda a área de segurança
pública do Rio de Janeiro, o que envolve também a Polícia Civil e o serviço penitenciário.
Ocorre que cabem à Polícia Civil as funções de polícia judiciária e a apuração
das infrações criminais, conforme os termos do artigo 144, § 4.o,
da Constituição, que não podem ser executadas nem supervisionadas por
militares, na medida em que o mencionado dispositivo constitucional determina
que a Polícia Civil deve ser dirigida por delegados de carreira.
Desta
forma, as FFAA não têm como assumir funções que são atribuídas às Polícias
Militar e Civil, caso contrário estará
configurado um indevido desvio de função dos militares, que estarão atuando em
desacordo com a ordem constitucional.
Entende-se
que é necessário combater, sem trégua, o tráfico de droga e armas, que destrói
famílias inteiras e retira a esperança de futuro a milhares de jovens, principalmente
nas áreas mais pobres, não só do Estado do Rio de Janeiro mas em muitos outros
Estados da federação. Contudo, tal atividade não deve ser das Forças Armadas,
que têm atribuição diversa das desempenhadas pelas Polícia Militar e Civil nos
Estados.
6) Conclusão:
Isto
posto, concluímos que a intervenção federal, decretada na segurança pública do
Estado do Rio de Janeiro e impondo limitação à autonomia da unidade federada – independemente
da vontade do seu governador em concordar ou não com a medida extrema adotada
pelo Governo Federal contra o Estado:
a)
é desnecessária, porque já estava em vigor desde julho de 2017
uma Garantia da Lei e da Ordem (GLO), no Estado do Rio de Janeiro, pela qual as
forças de segurança federal (Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e
Força Nacional de Segurança) e as Forças Armadas, sob a coordenação dos
Ministros da Defesa, Justiça e Gabinete de Segurança Institucional, estavam
colaborando tendo em vista a preservação da ordem pública e o combate ao crime
organizado no Estado;
b)
diante da inexistência de demonstração de esgotamento e de
incapacidade das forças de segurança do Estado do Rio de Janeiro, é
desnecessária também a intervenção federal, que limita a autonomia federativa;
c)
constitui desvio de função o emprego das Forças Armadas para a
execução de atividades inerentes das Polícias Militar e Civil, que não foram
julgadas incapazes de manter a ordem pública no Estado do Rio de Janeiro;
d)
imaginando-se que ainda esteja revestida de alguma eficácia a
Constituição de 1988 (que está sendo lida e interpretada para favorecer
interesses contrários à vontade original do constituinte de 1987/1988), não
existe impedimento para a União colaborar com o Estado do Rio de Janeiro para o
desenvolvimento de medidas estruturantes e de aprimoramento nas áreas de
segurança pública e desenvolvimento social, que podem ser intensificadas sem a
redução da autonomia federativa do Estado, por meio de uma intervenção federal
inteiramente dispensável.
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