Tenho desenvolvido
a tese de que a Constituição Federal de 1988 tornou-se exaurida e ineficaz, a
partir do afastamento de Dilma Rousseff da presidência da República (quando a
vontade manifestada no sufrágio foi ignorada), dadas a forma e as
circunstâncias em que transcorreu todo o processo político e jurídico do impeachment,
mediante a manipulação da Constituição para atender interesses casuístas e
derrocar a democracia.
Atacada
frontalmente, a Constituição “cidadã” não foi capaz de assegurar a democracia
nem de manter a estabilidade política no país; em consequência, as instituições
políticas (parlamento e judiciário) também se desmancharam com o impeachment, sem que seus membros tenham
percebido a grandiosidade de seus cargos e/ou o papel que lhes foi delegado
pelo constituinte originário para impedir o caos.
Com efeito, os
membros das instituições políticas (aqui os três poderes da República) promovem
na atualidade a autodissolução de suas funções e impõem, sem pensar, o fim
trágico do Estado brasileiro, que não consegue mais assegurar os objetivos
consensuais do pacto político de 5 de outubro de 1988.
Da mesma forma que
a Constituição brasileira hoje só existe no papel, também as instituições
políticas que nasceram dela não mais dispõem de autêntica legitimidade e
respaldo popular; vale lembrar que foi do espírito da vontade popular que se acendeu
a força nacional que exigiu o fim do regime civil-militar de 1964-1985, quando cessaram
todas as condições de se manter a ordem anterior.
Na verdade, a
Constituição de 1988 vem sendo esvaziada nos seus propósitos originais desde
governos anteriores, que aprovaram reformas que levaram a termo a defesa da
soberania nacional e dos valores sociais do trabalho e da dignidade humana, como
o fim do conceito de empresa brasileira, o monopólio do petróleo, as reformas
previdenciárias e as privatizações generalizadas de quase tudo que era dever do
Estado, sem que tenha havido prévia e ampla discussão com a sociedade.
No atual governo,
atingiu-se o marco para dar fim a quase trinta anos de tentativas de se
constituir, no Brasil, por meio da referida constituição, “uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social.”
Os pilares da
Constituição Federal de 1988 (proteção à soberania nacional, aos direitos
individuais e aos direitos sociais, representados com grande destaque pelo
fortalecimento dos direitos trabalhistas, vindos simbolicamente da era Vargas)
não estão mais produzindo os efeitos de reconhecimento, como aprovados e
acolhidos no meio da sociedade, a partir do amplo acordo de aceitação política
e social que originou aquele pacto constitucional.
Na teoria jurídica,
tem sido difundida uma corrente de pensamento que busca mitigar a racionalidade
do Direito, transpondo-o, por meio de pura retórica, para uma categoria de
natureza empírica, como fato social. De acordo com esta linha de pensamento, o
aspecto realista do Direito se manifesta mediante o entendimento firmado pelos
tribunais, principalmente os superiores, que julgam em definitivo as questões
constitucionais.
A partir disso,
pela construção da teoria do fato social empírico, o Direito torna-se aquilo
que os tribunais (e especialmente as Supremas Cortes) venham a pronunciar em
caráter definitivo. Essa corrente é facilitada pelos interesses da hegemonia,
que, pelo consenso, tenta estabelecer uma ordem política imposta de cima para
baixo, executada por burocratas e sem necessidade de qualquer respaldo na
soberania popular, de forma que a máxima “todo poder emana do povo” perca o seu
sentido histórico e finalista.
Por tal razão, é
difundido e massificado por certos meios de comunicação que o século XXI é do
protagonismo judicial; pelas mesmas vias são rebaixadas e desmoralizadas as
instituições políticas, como os parlamentos e os governos, nos quais ainda resta
algum grau de vontade popular capaz de impedir, mesmo que temporariamente,
reformas prejudiciais aos interesses da população, como a previdenciária
apresentada pelo governo, em anos eleitorais.
Assim, para a ordem
atualmente em curso, é normal que bancos promovam jantares e eventos sociais e
culturais para juízes; ou que juízes façam protestos e ameaças de greves visando
a manutenção de um benefício por moradia que atenta contra a moralidade jurídica;
ou, então, que juízes possam interferir em atos de governos, como a concessão
de indulto de natal. Em igual situação, que militares possam estar nas ruas
para executar atribuições da polícia, num nítido desvio de função.
Tudo isto deixa
evidente que não há mais eficácia da Constituição, pois ela proíbe tais
comportamentos, que, no entanto, são tolerados como normais; da mesma forma que
a Suprema Corte aceitou como normal o julgamento de Dilma Rousseff pela Câmara
dos Deputados e depois pelo Senado da República, num nítido desvio de suas funções
para a persecução de interesses contrários à manutenção da democracia.
A Constituição passou
a ser manuseada e lida conforme interesses alheios ao espírito (metafísico
mesmo) em que ela foi originada, o que promove o desmanche deste documento
jurídico, destituído de sua eficácia; em consequência, ocorre o mesmo nas
instituições políticas por ela criadas para o funcionamento do Estado brasileiro.
No cenário atual,
temos juízes que asseguram a manutenção de uma ordem jurídica ilegítima, que
não é a mesma estabelecida pela Constituição de 1988, que deve ser resgatada. Sendo assim, é preciso deixar claro que a suposta ordem
jurídica constitucional, que se alega estar em vigor no país, está sendo usada
tão somente para favorecer interesses contrários ao país e totalmente estranhos
à formação original do pacto político de 1988, que, ao nosso ver, já não mais
existe.
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