Pular para o conteúdo principal

O DESMANCHE DA CONSTITUIÇÃO

Abertura do ano Judiciário de 2018, no Supremo Tribunal Federal: os presidentes da República, do STF, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, da Ordem dos Advogados do Brasil e a Procuradora Geral da República
Tenho desenvolvido a tese de que a Constituição Federal de 1988 tornou-se exaurida e ineficaz, a partir do afastamento de Dilma Rousseff da presidência da República (quando a vontade manifestada no sufrágio foi ignorada), dadas a forma e as circunstâncias em que transcorreu todo o processo político e jurídico do impeachment, mediante a manipulação da Constituição para atender interesses casuístas e derrocar a democracia.
Atacada frontalmente, a Constituição “cidadã” não foi capaz de assegurar a democracia nem de manter a estabilidade política no país; em consequência, as instituições políticas (parlamento e judiciário) também se desmancharam com o impeachment, sem que seus membros tenham percebido a grandiosidade de seus cargos e/ou o papel que lhes foi delegado pelo constituinte originário para impedir o caos.
Com efeito, os membros das instituições políticas (aqui os três poderes da República) promovem na atualidade a autodissolução de suas funções e impõem, sem pensar, o fim trágico do Estado brasileiro, que não consegue mais assegurar os objetivos consensuais do pacto político de 5 de outubro de 1988.
Da mesma forma que a Constituição brasileira hoje só existe no papel, também as instituições políticas que nasceram dela não mais dispõem de autêntica legitimidade e respaldo popular; vale lembrar que foi do espírito da vontade popular que se acendeu a força nacional que exigiu o fim do regime civil-militar de 1964-1985, quando cessaram todas as condições de se manter a ordem anterior.
Na verdade, a Constituição de 1988 vem sendo esvaziada nos seus propósitos originais desde governos anteriores, que aprovaram reformas que levaram a termo a defesa da soberania nacional e dos valores sociais do trabalho e da dignidade humana, como o fim do conceito de empresa brasileira, o monopólio do petróleo, as reformas previdenciárias e as privatizações generalizadas de quase tudo que era dever do Estado, sem que tenha havido prévia e ampla discussão com a sociedade.
No atual governo, atingiu-se o marco para dar fim a quase trinta anos de tentativas de se constituir, no Brasil, por meio da referida constituição, “uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social.”
Os pilares da Constituição Federal de 1988 (proteção à soberania nacional, aos direitos individuais e aos direitos sociais, representados com grande destaque pelo fortalecimento dos direitos trabalhistas, vindos simbolicamente da era Vargas) não estão mais produzindo os efeitos de reconhecimento, como aprovados e acolhidos no meio da sociedade, a partir do amplo acordo de aceitação política e social que originou aquele pacto constitucional.
Na teoria jurídica, tem sido difundida uma corrente de pensamento que busca mitigar a racionalidade do Direito, transpondo-o, por meio de pura retórica, para uma categoria de natureza empírica, como fato social. De acordo com esta linha de pensamento, o aspecto realista do Direito se manifesta mediante o entendimento firmado pelos tribunais, principalmente os superiores, que julgam em definitivo as questões constitucionais.
A partir disso, pela construção da teoria do fato social empírico, o Direito torna-se aquilo que os tribunais (e especialmente as Supremas Cortes) venham a pronunciar em caráter definitivo. Essa corrente é facilitada pelos interesses da hegemonia, que, pelo consenso, tenta estabelecer uma ordem política imposta de cima para baixo, executada por burocratas e sem necessidade de qualquer respaldo na soberania popular, de forma que a máxima “todo poder emana do povo” perca o seu sentido histórico e finalista.
Por tal razão, é difundido e massificado por certos meios de comunicação que o século XXI é do protagonismo judicial; pelas mesmas vias são rebaixadas e desmoralizadas as instituições políticas, como os parlamentos e os governos, nos quais ainda resta algum grau de vontade popular capaz de impedir, mesmo que temporariamente, reformas prejudiciais aos interesses da população, como a previdenciária apresentada pelo governo, em anos eleitorais.
Assim, para a ordem atualmente em curso, é normal que bancos promovam jantares e eventos sociais e culturais para juízes; ou que juízes façam protestos e ameaças de greves visando a manutenção de um benefício por moradia que atenta contra a moralidade jurídica; ou, então, que juízes possam interferir em atos de governos, como a concessão de indulto de natal. Em igual situação, que militares possam estar nas ruas para executar atribuições da polícia, num nítido desvio de função.
Tudo isto deixa evidente que não há mais eficácia da Constituição, pois ela proíbe tais comportamentos, que, no entanto, são tolerados como normais; da mesma forma que a Suprema Corte aceitou como normal o julgamento de Dilma Rousseff pela Câmara dos Deputados e depois pelo Senado da República, num nítido desvio de suas funções para a persecução de interesses contrários à manutenção da democracia.
A Constituição passou a ser manuseada e lida conforme interesses alheios ao espírito (metafísico mesmo) em que ela foi originada, o que promove o desmanche deste documento jurídico, destituído de sua eficácia; em consequência, ocorre o mesmo nas instituições políticas por ela criadas para o funcionamento do Estado brasileiro.
No cenário atual, temos juízes que asseguram a manutenção de uma ordem jurídica ilegítima, que não é a mesma estabelecida pela Constituição de 1988, que deve ser resgatada. Sendo assim, é preciso deixar claro que a suposta ordem jurídica constitucional, que se alega estar em vigor no país, está sendo usada tão somente para favorecer interesses contrários ao país e totalmente estranhos à formação original do pacto político de 1988, que, ao nosso ver, já não mais existe.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

SEQUESTRO DAS NAÇÕES PELO CAPITAL

Foto de Aly Song/Reuters O jornalista Andy Robinson, em seu livro “Um repórter na montanha mágica” (Editora Apicuri, 2015), revela de que forma os integrantes do exclusivo clube dos ricos de verdade comandam a política universal, a partir da gelada Davos, e patrocinam a destruição de nações inteiras para alcançar seus objetivos econômicos particulares. Muito antes que alguns cientistas sociais cunhassem a expressão “tropa de choque dos banqueiros”, ao se referirem ao grupo considerado como classe média, Robinson desvendou como aqueles menos de um por cento da população universal manipulam sem qualquer piedade os outros noventa e nove por cento, inclusive promovendo ações sociais de suposta bondade, que contribuem para aumentar e perpetuar a miséria entre os povos. Ao falar sobre as mencionadas ações caritativas, patrocinadas por bilionários como Bill Gates e o roqueiro Bono da banda U2, Slavoj Zizek rotulou seus realizadores   de “comunistas liberais”, que manipulam org...

O país ingovernável

  Por Jorge Folena   No dia 27 de julho de 1988, o ex-presidente José Sarney, com certo tom de ameaça, dirigiu-se aos constituintes, em cadeia nacional de rádio e televisão, para afirmar, ao longo de vinte e oito minutos, que o texto constitucional que estava para ser aprovado deixaria “o país ingovernável”.  Na verdade, José Sarney manifestou na ocasião os interesses mais atrasados da classe dominante brasileira, que entendia que o reconhecimento dos amplos direitos sociais inseridos na Constituição brasileira de 1988 teria um grande impacto sobre o orçamento geral da União, controlado para satisfazer apenas os interesses dos muito ricos, deixando os pobres entregues à própria sorte. É importante lembrar, por exemplo, que, antes da Constituição de 1988 não existia o sistema único de saúde com atendimento universal para todos os brasileiros.  E o presidente Sarney, com o velho e surrado argumento, afirmava que o novo texto constitucional representaria um desencorajam...

Superação do fascismo no Brasil

A nau dos loucos de H. Bosch Por Jorge Folena   Infelizmente, as instituições têm normalizado o fascismo no Brasil. E foi na esteira dessa normalização do que deveria ser inaceitável que, na semana passada circulou nas redes sociais (em 02/07/2024) um vídeo de treinamento de policiais militares de Minas Gerais, em que eles corriam pelas ruas cantando o refrão “cabra safado, petista maconheiro”. [1] O fato configura um absurdo atentatório à Constituição, pelo qual todos os envolvidos (facilmente identificáveis) deveriam ter sido imediatamente afastados das suas funções, inclusive sendo determinadas prisões disciplinares, e, em seguida, sendo processados administrativa e criminalmente.  Outro caso esdrúxulo foi o de um desembargador do Paraná, que em plena sessão de julgamento, não teve qualquer escrúpulo em derramar toda a sua misoginia, ao criticar o posicionamento de uma mulher (o caso analisado no tribunal era de uma menina de 12 anos, que requereu medida protetiva contra a ...