Por Jorge Folena
O projeto destruidor em curso, promovido por Jair Bolsonaro e Paulo Guedes sob o falso argumento de garantir a “liberdade econômica”, entrega a sorte da população nas mãos do mercado financeiro e retira do Poder Público a capacidade de intervir na economia para proteger a sociedade dos abusos praticados pelo setor privado.
O Brasil é um dos maiores produtores de alimentos do mundo, com imensa capacidade de geração de proteína vegetal e animal; porém, atualmente há mais de 20 milhões de brasileiros sofrendo a fome crônica e 116 milhões padecem de insegurança alimentar, por não terem a necessária capacidade econômica para sustentar dignamente a si e a suas famílias.
O governo de Bolsonaro, além não garantir a existência de um estoque regulador de alimentos (o que se impõe a qualquer país, como estratégia de segurança nacional), permite que eles sejam exportados sem quaisquer limites, fazendo com que os brasileiros tenham que comprar produtos essenciais à sobrevivência por preços proibitivos, quando milhões enfrentam as agruras do desemprego e do subemprego.
Na verdade, por meio da Medida Provisória 881/2019 (que “instituiu a declaração de liberdade econômica”), convertida na Lei 13.874/2019, Bolsonaro revogou a importantíssima Lei Delegada nº 4, de 1962, que dispunha “sobre a intervenção no domínio econômico para assegurar a livre distribuição de produtos necessários ao consumo do povo”.
Segundo a medida legislativa apresentada por Bolsonaro e encampada pela maioria do Parlamento, o Poder Público não deve intervir na ordem econômica.
Ocorre que a Constituição estabelece que o Estado atuará “como agente normativo e regulador da atividade econômica”. Sendo assim, a Constituição não exclui a intervenção do Poder Público na economia. Tanto é que o Estado não está impedido sequer de participar diretamente dos empreendimentos econômicos, podendo fazê-lo desde que estejam relacionados à segurança nacional e ao interesse coletivo.
Ora, se o Estado tem a prerrogativa de agir como empreendedor, tem mais ainda o comando constitucional para intervir na economia nos casos de relevante interesse coletivo e para a preservação da soberania nacional, principalmente nos assuntos relacionados “à livre circulação de mercadorias e serviços essenciais ao consumo e uso do povo”, como dispunha a Lei Delegada nº 4/62.
Ou seja, a mencionada lei encontrava total amparo na atual ordem constitucional porque, em situações excepcionais, é necessária a intervenção do Poder Público, a fim de evitar qualquer ação tendente à desestabilização da ordem social, política, jurídica e econômica. A Lei Delegada revogada visava coibir tentativas de desabastecimento postas em prática pela ação de grupos econômicos, a exemplo do que está ocorrendo hoje, no país, com os alimentos sendo exportados sem a mínima preocupação com a segurança alimentar interna, em detrimento dos interesses do povo, que não tem como comprá-los em razão dos preços proibitivos praticados no mercado nacional.
Com efeito, a Constituição consagra a livre iniciativa e garante a liberdade econômica, mas isso não significa que o Estado não possa intervir na ordem econômica como defende Bolsonaro, uma vez que existem princípios fundamentais que devem nortear a sociedade brasileira, como a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho, a solidariedade, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais, princípios fundamentais aos quais todo e qualquer mandatário está obrigado, a partir do momento em que toma posse do cargo.
Nessas bases, os interesses do mercado não podem prevalecer a qualquer custo. Principalmente em períodos de crise econômica e social, como esta que atinge cruelmente o país (muito em consequência da péssima gestão do atual governo), faz-se indispensável para todos a intervenção do Poder Público para evitar a convulsão.
Por isto, não pode o governo renunciar ao seu dever de agente fiscalizador e normatizador, determinado na Constituição, que lhe impõe o dever de agir para garantir e proteger a população, que é a base e a sustentação legítima do Estado brasileiro.
A esse respeito, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que:
“É certo que a ordem econômica na Constituição de 1988 define opção por um sistema no qual joga um papel primordial a livre iniciativa. Essa circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só intervirá na economia em situações excepcionais. Muito ao contrário. Mais do que simples instrumento de governo, a nossa Constituição enuncia diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Postula um plano de ação global normativo para o Estado e para a sociedade, informado pelos preceitos veiculados pelos seus artigos 1º, 3 º e 170. A livre iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho. Por isso a Constituição, ao contemplá-la, cogita também da “iniciativa do Estado”; não a privilegia, portanto, como bem pertinente apenas à empresa.” (ADI 3.512-ES, julgada em 15/02/06)
Assim, a livre iniciativa não é absoluta nem as empresas estão acima da sociedade, não podendo dispor de total liberdade econômica para fazerem que o bem entendem. Por isso é imprópria a posição defendida por Bolsonaro de que o Poder Público não deve intervir na economia em situações especiais, como previa a Lei Delegada nº 4, de 1962, inescrupulosamente revogada pelo atual governo.
Isso porque, do mesmo modo que ocorre hoje no Brasil, inclusive em relação aos combustíveis, já constatamos diversas vezes, no passado, a manipulação de preços, a destruição e o desperdício doloso de alimentos, a sonegação combinada de gêneros e produtos etc.
A Lei Delegada, sancionada pelo Presidente João Goulart em 1962, era instrumento extremamente atual e necessário, sob o enfoque humano e solidário, particularmente no que toca à proteção ao trabalho, base de tudo. Na verdade, a quem interessou, então, sua revogação?
Para responder a essa indagação, valho-me das palavras do Presidente João Goulart em seu último discurso, proferido na Central do Brasil em 13 de março de 1964:
“A democracia que eles desejam impingir-nos é a democracia antipovo, do antissindicato, da antirreforma, ou seja, aquela que melhor serve ao grupo que eles servem e representam: a democracia dos monopólios privados nacionais e internacionais.”
E são esses mesmos monopólios que, recentemente, na chamada “crise financeira mundial”, exigiram dos Estados o repasse de recursos para salvar seus negócios, utilizando a riqueza originada pelo esforço de milhões de trabalhadores.
Considero oportuno resgatar que, na crise financeira de 2008, a Tribuna da Imprensa de 29/10/2008 foi reveladora ao noticiar na sua página 7 que os “Ricos querem ajuda dos pobres”. E na página 8 informou que o “Mundo já gastou 11% do PIB para salvar bancos” e “os governos já gastaram mais de 11% do PIB mundial para dar liquidez e salvar os bancos desde abril, o equivalente a mais de quatro vezes o tamanho da economia brasileira.”
O mais grave de tudo é que, naquela época (apenas para efeito de comparação com os dias atuais), para acabar com a fome mundial seria necessário apenas a metade do que foi doado para os bancos ingleses (US$ 30 bilhões).
Então, na hora da crise do capital, o Estado deve atuar na economia, a exemplo do que foi feito recentemente, durante a pandemia da Covid-19, quando mais de 1,2 trilhões de reais foram colocados à disposição dos bancos nacionais com autorização do Governo de Jair Bolsonaro, que, por outro lado, resistiu o quanto pode para pagar o auxílio emergencial de meros seiscentos reais para os trabalhadores. Mas agora, na crise de abastecimento, o Estado não pode se apresentar como interventor, a fim de assegurar a livre distribuição de produtos necessários ao consumo e à sobrevivência do povo?
Diante de tanta manipulação e hipocrisia, a revogação da Lei Delegada nº 4, de 1962, foi mais um atentado à democracia e à soberania popular, praticado por Jair Bolsonaro e por uma grande parcela do Poder Legislativo que, reiteradamente, patrocina interesses contrários aos dos cidadãos que deveriam representar e honrar.
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