No mundo, há os que acreditam que, da vontade de sua imaginação e por via de “meras representações de suas mentes”, seja possível construir uma sociedade ideal e superior.
O
grave estado de injustiça constatado pelos quatro cantos, a partir das eras
moderna e pós-moderna, tem sua gênese exatamente nessa concepção de
superioridade idealista, que conduz a um estado de permanente infelicidade
entre os homens, como apontado pelo Dr. Freud (“Mal-estar da civilização”,
1930).
No
processo de construção do presente marcado pelo atraso, o idealismo
apresenta-se como aliado e forte instrumento na imposição de um mundo desigual,
no qual indivíduos e sociedades, em uma percepção distorcida, consideram-se
superiores a outras pessoas e povos.
A
ideologia do fascismo, tão difundida nos dias atuais, arregimenta cada vez mais
seguidores, identificados com sua doutrina de superioridade, que se utiliza da
perseguição ideológica e fomenta ações de combate físico aos grupos sociais e
organizações políticas que cultivam valores opostos aos seus.
Ocorre
que sua ampliação contribui para que os pouquíssimos ricos fiquem cada vez mais
ricos, pois logram sequestrar o governo dos Estados e colocá-los para trabalhar
em prol de seus negócios; desta maneira, passam a beneficiar-se exclusivamente
das riquezas do mundo.
O
fascismo, que é real [e consegue cooptar cada vez mais o “homem massa” (Ortega
y Gasset), que vaga sem esperança, trabalho ou sonhos, em decorrência da
pobreza gestada na exploração do mundo], tem sua concepção em uma crença
idealizada de superioridade, originada a partir de meras representações da
mente de determinados pensadores, que enxergam a si mesmos como iluminados e
capazes de apontar a saída para os problemas da humanidade.
Os
idealistas, porém, negam-se ao enfrentamento das reais causas que se aglutinam
na gênese dos grandes males que a concentração de capitais tem causado à
humanidade. No outro ângulo, o aumento da pobreza entre os povos agrava cada
vez mais a luta de classes e faz recrudescer as políticas neoliberais, que
visam destruir qualquer forma de solidariedade construída pela sociedade
pós-moderna.
Para
aqueles pensadores (e entre eles, muitos seguidores do idealismo de Hegel), é
mais fácil estabelecer – de forma falsa – que existem sociedades que são
superiores e outras que são fracas, seja pela constituição física de seus
integrantes ou por sua orientação cultural: tem-se aí a construção que erigiu
as bases e fortaleceu o colonialismo europeu sobre a América Latina, África e
Ásia.
Hegel,
em sua fenomenologia, acredita ser possível estabelecer a verdade como “o
movimento dela em si mesma”; ou seja, a partir de uma ideia irreal de que o
tempo possa parar (pois que o pensamento gira em torno de círculos[1])
e, assim, seja possível manter o status
quo, como lhe criticou Schopenhauer. Porém, o mundo real – como os
ponteiros do relógio – caminha sempre para a frente, ainda que os reacionários
de cada época insistam em permanecer nas sombras do passado da sua glória e
poder, por acreditarem que assim podem manter o “curso-do-mundo”[2].
Hegel,
criticado por Schopenhauer[3]
por seus propósitos políticos equivocados, estabeleceu em sua “Filosofia da
história”[4]
as bases indevidas para uma falsa superioridade europeia, a erigir o “Velho
Mundo” como “palco da história universal”.
Justifico
a longa introdução por considerar que existem muitos mitos, que precisam ser esclarecidos
pelos estudiosos, sobre a fundação do Exército no Brasil, mitos esses que – em
grande medida, de forma puramente racional – induzem a uma suposta
superioridade da instituição em relação
ao povo, que constituiu a essência do Estado brasileiro, foi e é seu principal
componente.
Os
artífices da mistificação partem das idéias contidas na Filosofia do Direito de
Hegel, que considera que a livre manifestação de vontade individual forma a
família, que forma a sociedade civil burguesa, que, por sua vez, forma o
Estado. Contudo, no prosseguimento da construção hegeliana, o Estado não é
controlado pelo povo (que por meio da sua vontade o constituiu), mas por uma
monarquia constitucional, que se posiciona acima da população e se respalda na
força militar para se manter no poder e controlar a soberania nacional (de
conteúdo institucional e não popular).
Tudo
isto para garantir o sistema de proteção da propriedade particular, mediante a
troca mútua de interesses privilegiados, pela qual se permite que o monarca
exerça o poder do Estado para garantir a segurança da propriedade individual,
desde que o faça utilizando a força militar (que se posiciona como uma linha
média de estamento), que, por sua vez, recebe em troca vantagens especiais e
diferenciadas em relação aos demais integrantes da sociedade.
Ao
final, por esta concepção, o que se defende são interesses de particulares,
existentes dentro de um Estado formal; ao contrário do que se espera, não se
defende a pátria (conjunto da população e das riquezas coletivas, submetidas ao
Estado).
As
idéias expostas até aqui nos levam a examinar a manifestação do ministro Aldo
Rebelo, em discurso de 19/04/2016[5], ao
tratar da fundação do Exército brasileiro:
“Na data de hoje, o Brasil comemora o aniversário
da Primeira Batalha dos Guararapes – episódio fundador de nossa nacionalidade.
A vitória no campo dos Guararapes, em Pernambuco, em 1648, definiu o triunfo
sobre o invasor holandês e, acima de tudo, o destino e o futuro do Brasil. Nas
palavras de Gilberto Freyre, quando a Batalha completava 300 anos, em 1948:
‘Nas duas batalhas dos Guararapes escreveu-se a sangue o endereço do Brasil: o
de ser um Brasil só e não dois ou três. O de ser um Brasil fraternalmente
mestiço, na raça e na cultura.
(...)
As três etnias que formaram a miscigenação
nacional a partir de Guararapes são representadas pelas figuras dos três
líderes da Batalha: o índio potiguar Filipe Camarão, que comandou o
destacamento indígena; o negro Henrique Dias, filho de escravos africanos
libertos, que comandou o destacamento negro; e o mazombo André Vidal de
Negreiros, que comandou o destacamento de mestiços e brancos. O Brasil herdou a
grandeza desses antepassados e precisa consolidar uma Política de Defesa
compatível com essa grandeza, tanto em relação ao aspecto espiritual, forjado
na abnegação e no patriotismo que guiaram a vida dos heróis de Guararapes,
quanto em relação ao destino geopolítico do País.”
Ao
nosso ver, o racionalismo omitiu que, entre 1647-1650 (período das duas
batalhas dos Guararapes, travadas entre Portugal e Holanda), o Governador Geral
do Brasil era Antonio Teles de Meneses (1.º conde da Vila Pouca)[6], pois o
Brasil era à época uma colônia portuguesa, que, em 1640, passou a ter alguns governadores gerais,
agraciados com o título de vice-reis.[7]
Como
se pode verificar, é impossível que o Exército
brasileiro (como instituição) tenha sido constituído nas batalhas dos
Guararapes (1648 e 1649), na medida em que sequer existia um Estado brasileiro, não existindo, muito
menos, um povo brasileiro, em sua
essência, naquele período. Ademais, uma instituição burocrática, por mais
importante que seja, não tem o poder de fundar uma sociedade nem muito menos um
Estado; pois, sem qualquer dúvida, a instituição compõe o Estado, não estando
acima dele.
Neste
ponto, se entendemos que o Estado é constituído pela sociedade, ofende a lógica
afirmar que a sociedade seja constituída pelas instituições. Daí o surgimento
de um grave problema interpretativo, em decorrência do qual, em momentos de
crises institucionais, alguns militares acham-se no direito de se colocarem,
desde a fundação da República (1889) até hoje, à frente da população,
achando-se capacitados, por suas armas, a superar as crises políticas e
sociais; mediante a imposição de uma tutela que despersonaliza a vontade da
população.
Com
efeito, a construção espiritual que sugere a formação de um Exército brasileiro
em 1648/1649 (quando o Brasil sequer existia, tendo os portugueses cooptado
índios e negros para lutarem ao seu lado contra os holandeses), é utilizada com
a finalidade de garantir uma ordem tutelar, de forma muito próxima da filosofia
do direito hegeliana, construída para justificar o poder do monarca.
Portanto,
trata-se de uma tutela para fins de “interesses singulares” (Hegel), e não coletivos,
que, por isso, não se coaduna com a defesa permanente da pátria, cuja essência
são o povo e as riquezas coletivas da sociedade; sendo certo que sua atuação não
pode se restringir à proteção de interesses privados, da mesma forma que não
podem os integrantes das instituições militares manifestar nem impor seu
pensamento como se fossem ordens oficiais para cumprimento por toda a
sociedade.
Por
fim, vale registrar que, em razão das batalhas de Guararapes, Portugal perdeu para
a Holanda os territórios do atual Sri Lanka (antes Ceilão) e a Indonésia (antes
Ilhas Molucas) e teve que indenizar a
Holanda em mais de 63 toneladas de ouro, conforme convencionado no Tratado de
Paz, firmado em Haia, em 1661[8].
[1] Hegel (Fenomenologia do
Espírito, Vozes: Petrópolis, 2014, p. 42): “Mediante esse movimento, os puros
pensamentos se tornam conceitos, e somente então eles são em verdade: automovimentos,
círculos. São o que sua substância é: essencialidades espirituais.”
[2] Hegel (Fenomenologia do
Espírito. Vozes: Petrópolis, 2014, p. 264) expõe que
“o curso-do-mundo é pois, de um lado, a individualidade singular que busca seu
prazer e gozo; assim agindo, encontra sua singular ruína, e deste modo satisfaz
o universal. Mas essa satisfação mesma –
como aliás os outros momentos dessa relação – é uma figura e um movimento
pervertidos do universal. A efetividade é somente a singularidade do prazer e
do gozo, enquanto o universal é o seu oposto: uma necessidade que é apenas a
figura vazia do universal, uma reação puramente negativa e um agir
carente-de-conteúdo.”
[3] Schopenhauer. O Mundo
como vontade e representação. Contraponto: Rio de Janeiro: 2007, p. 141.
[4] Hegel. Filosofia da
história. Editora UNB: Brasília, 2008, p. 79).
[5] Por ocasião do aniversário da Primeira Batalha dos Guararapes e do Dia do Exército Brasileiro. Disponível em https://www.defesa.gov.br/artigos-e-entrevistas-do-ministro/171-menu-superior/area-de-imprensa/artigos-e-entrevistas-do-ministro/19957-batalha-dos-guararapes-e-dia-do-exercito-brasileiro. Acesso em 30 out. 2018
[6] Disponível em
http://mapa.an.gov.br/index.php/dicionario-periodo-colonial/196-governador-geral-do-estado-do-brasil.
Acesso em30 out. 2018
[7] “Dom Jorge de Mascarenhas, marquês
de Montalvão (1640-1641), foi o primeiro
Vice-rei do Brasil, que, até o século XVIII, só será concedido a alguns
governadores-gerais.” Disponível em
http://mapa.an.gov.br/index.php/publicacoes/80-assuntos/producao/cronologia/506-periodo-colonial-1600-a-1699
Acesso em 30 out. 2018.
[8] História brasileira, disponível em htpp://www.historiabrasileira.com Acesso em 30 out. 2018.
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