Por Jorge Folena[1]
Divirjo totalmente do governador do Estado do Rio de Janeiro, eleito em 2018 na onda da extrema direita, que empregou métodos de propagação de mentiras sistemáticas pela rede mundial de computadores, com forte evidência de abuso de poder econômico, como está sendo examinado pelo Tribunal Superior Eleitoral em relação à chapa vencedora, de forma questionável, na eleição presidencial.
O governador do Rio de Janeiro não apresentou, até aqui, qualquer política pública para melhorar a vida da população pobre do Estado, mas incentivou, desde o primeiro dia de seu governo, a continuação de práticas policiais abomináveis e desumanas, tendo sugerido à polícia “mirar na cabecinha” para o abate de seres humano.
Contudo, mesmo com todas as divergências contra o governador, não é possível aceitar, com passividade, o seu afastamento do cargo por decisão liminar proferida por um ministro do Superior Tribunal de Justiça; que, em verdade, violou o princípio da separação dos poderes e cassou o mandato conferido ao governador pelos eleitores do Estado do Rio de Janeiro, sem que tenha havido uma sentença transitada em julgado.
Independentemente das acusações apresentadas contra o governador, o afastamento imposto sem a constituição do devido processo legal, do contraditório e da garantia à ampla defesa, desrespeitando também a presunção de inocência (tão cara à sociedade contra práticas autoritárias), representa um desrespeito à soberania popular.
Com efeito, somente a Assembleia Legislativa do Estado poderia autorizar a suspensão do exercício das funções do governador, para que ele possa se defender das acusações, de natureza criminal, contra ele formuladas.
Vale lembrar que juízes exercem função burocrática e técnica, não dispondo de poderes conferidos pela vontade da população; não sendo admissível que interfiram em outros poderes (no caso, o executivo e o legislativo), antes mesmo de transitar em julgado a decisão relativa à questão sob exame.
Saliente-se que esta balbúrdia e flagrante violação constitucional teve início a partir do “vale tudo” promovido com intenção política, no final de 2014, contra os governos do Partido dos Trabalhadores, num movimento que abriu o caminho para o fascismo se instalar oficialmente no país, depois do final de 2018.
Desde 2016, juízes do Supremo Tribunal Federal, movidos pelo propósito de violar a presunção constitucional de inocência para retirar o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva da disputa presidencial de 2018, diziam, com total descaramento, que deveriam “ouvir as vozes das ruas”, uma vez que ocorria no país “uma mudança de percepção do direito”.
Em 2020, estes mesmos magistrados sentiram as ameaças disparadas, diretamente contra eles, pelas mesmas vozes, agora “ferozes”, das ruas, e pelas plataformas digitais, produtoras de mentiras, que vitimaram a candidatura de Fernando Haddad na eleição presidencial de 2018.
Depois de ter passado a tolerar, ainda em 2016, as prisões indevidas (antes de condenações definitivas e sem trânsito em julgado), no julgamento ocorrido em maio de 2017, o Plenário do Supremo Tribunal Federal mudou a sua antiga jurisprudência para permitir o processamento criminal, pelo Superior Tribunal de Justiça, do ex-governador Fernando Pimentel, do Partido dos Trabalhadores de Minas Gerais, independentemente de autorização da Assembleia Legislativa.
Assim, a partir deste julgamento, os governadores dos estados, com mandatos conferidos pela população, passaram a ter a sua sorte lançada nas mãos do Poder Judiciário, que, inclusive, foi indevidamente autorizado pelo Supremo Tribunal Federal a suspender o exercício de suas funções.
Para ficar bem claro: o Supremo Tribunal Federal conferiu ao Superior Tribunal de Justiça um poder que pertence unicamente às Assembleias Legislativas, por ser uma atribuição exclusivamente de natureza política, que é a suspensão do mandato conferido pelo voto popular, desde que admitida a acusação criminal pela casa legislativa.
O nocivo precedente aberto pelo Supremo Tribunal Federal possibilitou a flagrante usurpação do poder político do legislativo pelo Judiciário, que, tendo em vista os tradicionais interesses patrimonialistas (como as nomeações para cargos diversos), poderá abrir o caminho para perseguir a quem quer que contrarie os “interesses superiores”; o que possibilita, igualmente, a quebra do princípio republicano.
Permitir a abertura de processo criminal da forma como ocorreu no Estado do Rio de Janeiro já é extremamente grave. Porém, um juiz poder suspender, liminarmente, o exercício do mandato eletivo, constitui inaceitável violação à separação de poderes e à soberania popular.
É importante registrar que nem durante os primeiros anos da ditadura de 1964-1985, o Supremo Tribunal Federal ousou praticar tamanha violação aos princípios constitucionais liberais.
Para ilustrar, lembro que o ex-governador de Goiás, Mauro Borges (defendido por Sobral Pinto, no habeas corpus 41.269), teve assegurado pelo Supremo Tribunal Federal o direito de que, para ser processado, deveria haver a prévia autorização da Assembleia Legislativa de Goiás.
No caso de Fernando Pimentel, o uso político do Supremo Tribunal Federal, em 2017, possibilitou a vitória de um candidato da direita financista em Minas Gerais, na eleição de 2018. Mas, com o passar do tempo e com o exercício do contraditório e da ampla defesa, constatou-se a posterior absolvição de Pimentel, declarada em 2020.
O STF, sem nenhuma inocência, chocou o ovo da serpente e, agora, diversos governadores poderão sofrer o mesmo destino imposto ao Governador do Estado do Rio de Janeiro.
Ou seja, está aberta, e chancelada pelo STF, a temporada de caça a governadores, prefeitos e a quaisquer outros representantes que ousarem discordar publicamente das ideias e ações disseminadas e defendidas pela “política oficial”.
[1] Advogado e cientista politico. Doutor em ciência política, com pós-doutorado; mestre em Direito. Diretor do Instituto dos Advogados Brasileiros.
Parabéns Jorge, por sua brilhante caminhada. Te desejo todo secesso que você buscar!!!
ResponderExcluir