O Código Tributário Nacional (Lei 5.172, de 25/10/1966) é uma
norma do antigo regime (1964-1985), que foi recepcionada pela Constituição de
1988. Porém, esta recepção pela ordem constitucional vigente não impede o
questionamento de dispositivos do código que possam estar em desacordo com a
atual Carta Política, em particular quanto à segurança do direito de
propriedade (garantia fundamental prevista no artigo 5.º, XXII, CRFB),
que, na hipótese em exame, deve ser analisada em conjunto com o princípio do
devido processo legal (artigo 5.º, LIV, da CRFB): “ninguém será privado (...) de seus bens sem
o devido processo legal.”
O Código Tributário Nacional (CTN) determina que o Poder
Público, como sujeito ativo da relação tributária e agente fiscalizador, tem o
dever de constituir, pelo lançamento (artigo 142 do CTN), o crédito tributário.
O CTN, desde a sua vigência, assegura ao contribuinte a suspensão
do crédito tributário, por meio do exercício do contraditório em processo
administrativo (artigo 151, III, do CTN).
Contudo, isto não é
suficiente para tornar efetivo o lançamento administrativo pela fiscalização, que
não pode tornar-se uma certeza quase absoluta para se limitar ou expropriar o
patrimônio e lançar o nome do contribuinte no rol dos devedores.
Constituído em definitivo o crédito tributário, no âmbito da
Administração Pública, o CTN – seguindo uma orientação autoritária – determina
a inscrição do débito na Dívida Ativa Tributária (artigo 201 do CTN).
Numa ficção jurídica, comum a regimes de exceção, o artigo
204 do CTN diz que “a dívida regularmente
inscrita goza de presunção de certeza e
liquidez e tem efeito de prova
pré-constituída.” [1]
Com efeito, o crédito tributário, constituído unilateralmente
pela Administração Pública, torna-se certo e exigível, diante daquela norma, o
que possibilita à Fazenda Pública executar a dívida tributária, que, em muitos
casos, decorre de ações fiscais abusivas, por naturezas diversas.
Por outro lado, os títulos de crédito, em geral, são decorrentes
do reconhecimento prévio da dívida
por parte do devedor que inadimpliu a sua obrigação. Assim ocorre com o cheque,
a nota promissória, a duplicata, a confissão da dívida etc.
No crédito tributário, o contribuinte não reconheceu previamente a dívida, que foi constituída unilateralmente
pelo Fisco, mesmo o CTN supostamente lhe assegurando o direito de defesa
administrativo.
Neste caso, a presunção de “certeza” em favor da Fazenda
Pública coloca-a em uma posição de superioridade perante o
contribuinte; superioridade que, numa ordem democrática, o Estado não
dispõe, sob pena de imperarem abusos e incertezas, que poderão ser revertidos
contra toda a sociedade.
No caso de constituição de crédito tributário, a lei impõe à
fiscalização o dever de fazer o lançamento (artigo 142). Porém, em diversas
oportunidades tais lançamentos são questionáveis, seja pela natureza
interpretativa da exigência ou, até mesmo, por decorrem de atos ilegais e
abusivos da fiscalização.
Ao atribuir administrativamente ao crédito tributário as
características de certeza e exigibilidade, como prevê o artigo 202 do CTN,
para que venha a ser desconstituído posteriormente pelo Poder Judiciário
(artigo 5.º, XXXV, da CRFB), a norma do regime de 1966 faz com que recaia sobre o contribuinte o ônus de
comprovar a ilegalidade do suposto título, o que revela um inegável desequilíbrio de forças na
relação jurídica; contrariando a diretriz constitucional que tem por norte a
garantia fundamental da igualdade
entre as partes (artigo 5º, caput, da CRFB), inclusive nas
relações tributárias, onde o Poder Público têm limitações ao poder de tributar
e deve respeitar outras garantias asseguradas aos contribuintes (artigo
150, caput), como a igualdade de tratamento.
Assim, num Estado de direito, não é razoável que o Poder
Público/acusador tenha o privilégio de não ter que comprovar a ação fiscal de
seus agentes, que constituíram o crédito tributário. Na lógica atual, até então
aceita passivamente, a responsabilidade de desconstituir o lançamento fica a
cargo exclusivo do contribuinte acusado, que muitas vezes sofre com os exageros
e caprichos executados por parte da fiscalização.
Assim, em garantia da sociedade, deve-se ter a cautela
jurídica antes de considerar como certa e exigível a dívida tributária, constituída
unilateralmente pela fiscalização do Poder Público.
Ressalte-se que a ficção da certeza e da liquidez do crédito
tributário, por meio da Dívida Ativa, gera
um título unilateral de dívida (na medida em que não existe o reconhecimento prévio da obrigação pelo devedor,
ao contrário do que ocorre, em geral, com os títulos de crédito, como a
confissão de dívida, cheques, promissórias, duplicatas), a fim de possibilitar
que a Fazenda Pública execute judicialmente o débito.
Neste ponto, a Lei 6.830, de 22/09/1980 (LEF) – também
oriunda do período anterior a atual Constituição de 1988 – permite que a
Fazenda Pública, valendo-se da mera inscrição na Dívida Ativa (artigo 3º LEF),
possa executar a dívida tributária constituída unilateralmente (artigo 4º LEF)
e impõe ao contribuinte (que tem seu nome lançado no rol de devedores) o ônus
de pagá-la no prazo de cinco dias ou oferecer bens de sua propriedade como
garantia (artigos 8.º e 10º da LEF).
Como se vê, o contribuinte é considerado devedor, de antemão,
sendo compelido a pagar ou indicar propriedade sua para garantir uma suposta dívida,
que foi constituída exclusivamente pelo Poder Público. Tal fenômeno atinge diretamente o patrimônio do contribuinte
(artigo 5.º, XXII, CRFB), sem que o devido processo legal seja respeitado
(artigo 5.º, LIV, da CRFB).
A cláusula do devido processo legal assegura que ninguém será
privado de seus bens sem o devido processo legal. Neste caso, o devido processo
legal deve caminhar, em matéria tributária, como a cláusula da presunção de inocência do direito penal, na
medida em que se está tratando da cobrança de tributo, que, numa análise extensiva,
corresponde a uma forma de penalização imposta pelo Estado e que recai diretamente
sobre a propriedade do contribuinte.
Ou seja, sem a confirmação judicial (artigo 5.º,
XXXV, da CRFB) da validade do crédito tributário (constituído unilateralmente
pela Fazenda Pública), e de acordo com os princípios da ordem constitucional
democrática (consubstanciados no devido processo legal, no contraditório e na
ampla defesa), não existe segurança para os contribuintes, que podem ter seus
patrimônios afetados por uma cobrança, originada por uma ficção jurídica de presunção de certeza e liquidez, que
inverte contra o contribuinte todo o ônus probatório para a
desconstituição da dívida.
Na lógica do processo (seja ela relativa ou absoluta), o ônus
da prova recai sobre o autor da cobrança ou da acusação, como salientado; por
isso, não é crível que, numa ordem jurídica democrática, o Poder Público se
apresente como senhor absoluto da verdade, pois tal presunção coloca-o numa
posição de superioridade que ele não tem, a partir da obediência ao princípio
do devido processo legal; pois o princípio aqui reclamado parte sempre da igualdade como fórmula de equilíbrio para
se garantir a paz e para preservar a ordem política, social e econômica.
Isto posto, os artigos 204 do CTN e 3º, 4º, 8º e 10 da Lei
6.830/1980 não estão de acordo com a ordem jurídica estabelecida pelo pacto político
de 1988, que garante o direito de igualdade, de propriedade, o acesso à
Justiça, o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.
No mesmo diapasão, deve ser rechaçada como institucional,
pelos mesmos fundamentos, toda fórmula legislativa que determina o protesto da
certidão da Dívida Ativa contra o contribuinte (como previsto no artigo 1º,
único da Lei Federal 9.492/97), diante de um suposto débito por ele não
reconhecido previamente, ao contrário das demais formas de constituição do
título executivo, nas quais o devedor reconhece previamente a dívida, mas deixa
de adimpli-la na forma ajustada.
[1] Idêntica previsão consta no artigo 3º da Lei 6.830/80:
“A Dívida Ativa regularmente inscrita goza da
presunção de certeza e liquidez.”
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