BASE DE ALCÂNTARA: ANÁLISE CONSTITUCIONAL DO ACORDO FIRMADO PELOS GOVERNOS DO BRASIL E DOS ESTADOS UNIDOS
- O
que diz o atual governo brasileiro sobre o acordo
No
documento produzido pelo governo brasileiro sobre o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas
(AST) [1], consta
que “os Estados Unidos (da América
do Norte) autorizam o Brasil a
realizar lançamentos de foguetes e espaçonaves para fins pacíficos, de quaisquer
nacionalidades contendo componentes americanos”.
Pelo
mencionado acordo, o atual governo do Brasil pretende permitir a utilização das
instalações do Centro Aeroespacial de Alcântara (CEA) para lançamento de
foguetes e espaçonaves, mediante remuneração a ser cobrada por meio de acordos
com outros países, desde que contenham componentes americanos.
O
governo expõe, sem apresentar dados concretos, que “em 20 anos, estima-se que,
devido a não aprovação do AST, o Brasil perdeu aproximadamente U$S 3,9 bilhões
(cerca de R$ 15 bilhões) em receitas de lançamentos não realizados”.
Para
justificar a assinatura do acordo com os americanos, o governo alegou, também
de forma retórica, que “atualmente, aproximadamente 80% dos equipamentos
espaciais do mundo possuem algum componente norte-americano” e, sendo assim, sem
a aprovação do AST, “o Brasil ficará praticamente fora do mercado de
lançamentos especiais.”
O
manifesto governamental prossegue:
O
AST trata apenas de autorização dos
Estados Unidos ao Brasil para lançamento de foguetes e satélites
nacionais ou internacionais, que contenham componentes americanos. (...) A
jurisdição de toda a área pertence ao Brasil.
Com relação às operações em
território nacional, todas as atividades, inclusive o transporte e
processos aduaneiros de tecnologia americana, serão acompanhadas e assistidas pelas autoridades brasileiras.
Além
disso, o governo brasileiro alega que o AST não ameaça a soberania nacional,
porque “não trata de construção ou operação de base norte-americana em
Alcântara, entrega ou controle do Centro, acordo militar ou mesmo garantia de
uso exclusivo pelos Estados Unidos.”
Nesse
ponto, o governo afirma que:
Sendo
um centro comercial com a disposição de lançar foguetes e satélites de muitos
países, o Centro certamente será visitado por muitos profissionais
estrangeiros. A jurisdição, o acesso de
toda a área e o controle do Centro de Lançamentos são do Brasil. O Centro
Espacial de Alcântara continuará sendo controlado exclusivamente pelo governo
brasileiro. Sob a jurisdição do
Ministério da Defesa, e com a participação da Agência Espacial Brasileira
(AEB), do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e
de outras instituições, no que couber. Todas as atividades no Centro ocorrerão
sob a supervisão do Brasil, exatamente
como ocorrem hoje.
O
governo esclarece que a aprovação do AST não implica o aluguel da Base de
Alcântara: “Embora a operação comercial do Centro Especial envolva a utilização
de áreas restritas e controladas para proteger a tecnologia embarcada nos
foguetes e espaçonaves construídos por diversos países, o acordo não constitui
um aluguel dessas áreas.”
Pela
afirmação acima, fica patente, então, que os americanos irão utilizar a Base
brasileira para lançamento de foguetes e espaçonaves sem nada pagar ao Brasil e, como se não bastasse, sem transferir tecnologia ao país, pois
assim mesmo reconhece o governo: “HÁ PREVISÃO DE TRANSFERÊNCIA DE TECNOLOGIA
ENTRE OS PAÍSES? NÃO. (...) O
AST em nenhum momento trata da transferência de tecnologia ou cessão de área.”
O
governo prossegue, em tom quase retumbante, afirmando que:
Neste
acordo de proteção de dados tecnológicos, denominado salvaguardas tecnológicas,
no qual os Estados autorizam o Brasil
a realizar lançamentos de foguetes e espaçonaves, para fins pacíficos, de
quaisquer nacionalidades contendo componentes americanos é um grande avanço
para o país e ficará registrado na história como o início de uma era que trará
desenvolvimento social e econômico para a região.
Os
pontos centrais e a lógica do acordo são os seguintes:
1)
os norte-americanos autorizam o
Brasil a lançar foguetes
e espaçonaves deles ou originários de outros países, desde que contenham
componentes dos Estados Unidos da América do Norte;
2)
os
Estados Unidos da América do Norte não transferem nenhuma tecnologia ao Brasil e
também nada pagam a título de aluguel pelos lançamentos, que serão realizados de
base militar, no território brasileiro;
3)
os
americanos podem alienar sua tecnologia (de elevadíssimo valor agregado) para
outros países estrangeiros, que poderão utilizar a Base de Alcântara, criando a
possibilidade de o Brasil cobrar, ou não, destes países.
Diante
destas premissas, apresentamos duas questões cruciais, que procuraremos
responder a seguir: 1) A Constituição
brasileira permite a utilização do territorial nacional por Estado Nação estrangeiro, para desenvolvimento de
seus equipamentos e componentes e sem nada pagar ou transferir ao país? 2) Tal situação constitui atentado à soberania
nacional?
- O
que diz o Acordo
O
mencionado acordo dispõe em seu artigo I que:
Este
Acordo tem como objetivo evitar o acesso ou a transferência não autorizada de
tecnologias relacionadas com o lançamento,
a partir do Centro Espacial de Alcântara,
de Veículos de Lançamento dos Estados Unidos da América e de Espaçonaves dos Estados Unidos da América, da República
Federativa do Brasil ou Estrangeiras, por meio de Veículos de Lançamento dos
Estados Unidos da América ou de Veículos de Lançamento Estrangeiros que incluam
ou transportem qualquer equipamento que tenha sido autorizado para exportação
pelo Governo dos Estados Unidos da América.
Ao
contrário do que afirma o governo (que o Brasil fará os lançamentos de
espaçonaves ou foguetes), o artigo I permite, isto sim, que os Estados Unidos da América possam fazer lançamentos da Base de
Alcântara. Ou seja, trata-se da utilização do território nacional, por
potência estrangeira, para fins comerciais e até mesmo militares, por se tratar
de lançamento de foguetes e de espaçonaves que poderão ser empregados, conforme
o desenvolvimento da tecnologia, para objetivos
de defesa ou de ameaça na disputa pela hegemonia geopolítica.
O
Brasil pode estar sendo utilizado como incubadora para o desenvolvimento
militar norte-americano, em razão da posição geográfica estratégica da Base
Militar de Alcântara, no Estado do Maranhão.
Além de não pagarem e de nada ser exigido dos norte-americanos
como contrapartida na comercialização dos seus componentes para outros países, o
acordo impõe uma restrição a que o Brasil possa lançar veículos de outros
Estados Nacionais que detenham tecnologia própria (como China, Rússia e Índia,
fortes parceiros comerciais do nosso país e integrantes do BRICS); sendo
assegurada uma exclusividade aos Estados Unidos da América, fato omitido nas
considerações apresentadas pelo governo brasileiro.
O
item 1, do artigo III do Acordo, impõe várias restrições unilaterais ao Brasil, tais como:
Alínea A: não permitir o lançamento, a partir do Centro
Espacial da Alcântara, de Espaçonaves Estrangeiras ou Veículos de
Lançamento Estrangeiros de Propriedade ou sob controle de países os quais, na
ocasião do lançamento: i) estejam sujeitos a sanções estabelecidas pelo
Conselho de Segurança das Nações Unidas; ou ii) tenham governos designados por uma das Partes como havendo
repetidamente provido apoio a atos de terrorismo internacional.
Alínea B: não permitir o ingresso significativo, quantitativa
ou qualitativamente, de equipamentos,
tecnologias, mão-de-obra ou recursos financeiros no Centro Espacial de
Alcântara, oriundos de países que não sejam Parceiros (membros) do Regime de
Controle de Tecnologia de Misseis (MTCR), exceto se de outro modo acordado
entre as Partes.
Ademais,
o item 2 do artigo III do Acordo prevê que:
O governo
da República Federativa do Brasil
poderá utilizar os recursos financeiros obtidos (...), mas não poderá usar tais recursos para a aquisição, desenvolvimento,
produção, teste, emprego ou utilização de
sistemas da Categoria I do Regime de Controle de Tecnologia de Misseis
(MTCR), seja na República Federativa do Brasil ou em outros países.
No
item 4 do artigo III do Acordo, os Estados Unidos impõem que o Brasil, quanto à exportação ou importação
relacionada à atividade de lançamentos em questão, deve se submeter às leis e políticas norte-americanas:
É
intenção do Governo dos Estados Unidos da América aprovar as licenças de
exportação e importação (...), desde que
tal aprovação esteja em consonância com as leis, regulamentos e políticas norte
americanas (...)
Acresça-se
ainda que, pelo acordo analisado, o país coloca-se como mero preposto dos
Estados Unidos da América, pois, conforme o artigo VI (quanto ao controle de
acesso à áreas da Base de Alcântara), caberá ao Brasil “permitir e facilitar a supervisão e o monitoramento de atividades
de lançamento pelo Governo dos Estados
Unidos da América” e “apenas pessoas
autorizadas pelo Governo dos Estados Unidos da América deverão ter acesso
aos veículos de lançamento (...) (nas) áreas restritas. (...) (O) livre acesso a qualquer tempo, para
inspecionar, nas áreas controladas e restritas (...) O acesso às Áreas Restritas deverá ser controlado pelo Governo dos Estados Unidos da América”, que serão
de gerenciamento exclusivo do Governo dos Estados Unidos da América.
O
item 4 do artigo V do Acordo estabelece que cabe exclusivamente ao governo dos Estados Unidos da América decidir sobre a prestação, ou não, de informação ao governo brasileiro
acerca da presença de materiais
radioativos ou outras substâncias potencialmente danosas ao meio ambiente ou à
saúde humana, que possam estar presentes nos veículos de lançamento,
espaçonaves ou equipamentos dos Estados Unidos da América do Norte, uma vez que
a redação do mencionado dispositivo dispõe que:
O Governo dos Estados Unidos
deverá,
em conformidade com as leis e regulamentos dos Estados Unidos da América,
assegurar que Representantes Norte-americanos e/ou Licenciados Norte-americanos
tenham a permissão de fornecer ao
Governo da República Federativa do Brasil informações
relacionadas à presença (...) de
material radioativo ou de quaisquer substâncias definidas como
potencialmente danosas ao meio ambiente ou à saúde humana (...).
Portanto,
os Estados Unidos da América do Norte, por serem os donos dos veículos de
lançamento e da tecnologia, impuseram
uma série de condicionantes que, sem
qualquer dúvida, restringem a soberania
nacional, dentro de uma Base Militar, localizada no território brasileiro,
violando a Constituição Federal, como será analisado a seguir.
- Análise do
Acordo, nos termos da Constituição Federal
É
imperioso salientar que a soberania (princípio fundamental do Estado brasileiro
– artigo 1º, I, da CRFB) é constituída pela vontade do povo, que institui o
Estado[2].
Neste ponto, é importante salientar que não é o Estado que forma o
povo, mas o inverso; o que muitas autoridades civis e militares têm dificuldade
para entender, uma vez que foram forjados a partir da filosofia hegeliana
(Hegel, 2010, p. 230); em relação a esta, os críticos sustentam, de forma
adequada, que “não é a constituição que cria o povo, mas o povo a constituição.
(...) O homem não existe em razão da lei, mas a lei em razão do homem”.[3]
O
Estado, nas suas relações com outros países soberanos, deve atuar com
independência, de forma livre, igualitária e respeitando a autodeterminação dos
demais povos (artigo 4º, I, III e V, CRFB). Assim, em respeito à soberania
nacional, as autoridades do governo não podem permitir que o Brasil fique em posição
de sujeição, limitação, subordinação e dependência em relação a outro Estado
Nação, sob pena de atentar contra a segurança nacional e o povo do país.
Com
efeito, não é crível, sob o espectro dos princípios da soberania, da independência,
da igualdade entre os Estados e da autodeterminação, que se sujeite o Brasil à
imposição de qualquer Estado Nação ou de organismos multilaterais, dentro do
território nacional, como acima destacado.
A
propósito, não cabe aos Estados Unidos da América nem à Organização das Nações
Unidas, sob o aspecto político ou subjetivo, definir para o Brasil com que
países devemos nos relacionar ou a quem considerar como Estado “terrorista”.
O
que quer que seja decidido pelas autoridades norte-americanas, não pode implicar
a submissão do Estado brasileiro; até porque o Brasil deve se relacionar com as
demais nações tendo em vista o
respeito à autodeterminação dos povos, a não intervenção e a igualdade entre os
Estados (artigo 4º, III, IV e V,
CRFB); sendo que os Estados Unidos da América do Norte têm um histórico
intervencionista e belicista contra diversos outros Estados Nações, muitos deles
grandes parceiros comerciais e culturais do nosso país.
Por
isto mesmo, o Brasil não deve aderir a um acordo pelo qual pode ser utilizado
como peão contra eventuais inimigos norte-americanos, levando o país a participar
de conflito “por procuração”, quando o princípio que nos rege é a defesa da paz
(artigo 4º, VI, CRFB).
O
Brasil não pode aceitar que outro país lhe diga o que deve ou não fazer, como
está inserido no acordo em favor dos Estados Unidos da América do Norte, sob
pena de violação da soberania nacional e da nossa independência.
A
Nação brasileira, em respeito à autodeterminação do povo americano (artigo 4º, III,
CRFB), não diz ao governo dos Estados Unidos da América como agir ou com quem se
relacionar.
Ainda
que o Acordo afirme a intenção de utilização da base para fins pacíficos, nos
termos item 4 do artigo V do Acordo, caberá somente aos Estados Unidos da
América do Norte informar sobre a existência de material radioativo, que pode
ser empregado para operações militares de natureza nuclear. O Brasil estará na dependência de os Estados
Unidos da América do Norte revelarem, ou não, se estão utilizando nos foguetes a serem lançados da base de
Alcântara material com potencial militar
de destruição em massa (“material
radioativo”), cujo emprego para fins bélicos é vedado ao nosso país (art.
21, XXIII, “a”, da CRFB, que estabelece que “toda atividade nuclear em território nacional somente será admitida
para fins pacíficos”).
A
esse respeito, os Estados Unidos da América do Norte estão atualmente liberados
para utilizar armas nucleares, uma vez que o governo norte-americano de Donald
Trump decidiu abandonar o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário
(INF), firmado em 1987 com a antiga União Soviética, que proibia a utilização
de mísseis com alcance de 500 a 5.000 quilômetros de distância.
A
aprovação definitiva deste Acordo poderá gerar um quadro de instabilidade em toda a América Latina e no Hemisfério Sul,
podendo o Brasil vir a ser ameaçado por outros países que se sintam
fragilizados na sua segurança interna.
Ressalte-se
que o acordo é extremamente vantajoso para os Estados Unidos da América, que nada
pagarão ao nosso país, não se obrigam a transferir tecnologia e podem provocar
a exposição da nossa segurança em relação a outros países, tendo em vista o
reiterado caráter belicista dos governos norte-americanos.
Além
disso, o acordo impõe uma série de limitações ao Brasil, que se submete a restringir
a utilização da base de lançamento de Alcântara somente a países parceiros dos
Estados Unidos; ficando nosso país impedido de fazer acordos comerciais com
outros detentores de semelhante tecnologia.
Desta
forma, os Estados Unidos da América do Norte podem estabelecer em benefício
próprio a exclusividade na utilização de base militar no território brasileiro,
para lançamento de seus foguetes e espaçonaves ou os de outros países que
comprem seus equipamentos.
- Conclusão
O
acordo firmado pelo atual governo nos coloca diretamente sob a dependência dos
Estados Unidos da América do Norte possam, que podem, inclusive, determinar o
que deve ser feito pelo Brasil com relação a lançamento e desenvolvimento de
tecnologia de foguetes e espaçonaves; o que constitui violação direta à
soberania nacional (artigo 1º, I, CRFB) e a outros princípios que devem ser
observados pelo governo nas suas
relações com os demais países, como a independência nacional, a
autodeterminação dos povos, a não intervenção, a igualdade entre os Estados e a
defesa da paz (artigo 4º, I, III, IV, V, VI, CRFB).
A
palavra definitiva sobre o mencionado Acordo de Salvaguardas Tecnológicas
caberá ao Congresso Nacional (que detém a competência de resolver, em definitivo,
sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ao patrimônio nacional,
nos termos do artigo 49, I, CRFB), que deverá estar atento aos reais interesses
do país e do povo brasileiro, tendo em vista que a soberania nacional não se aluga, não se empresta nem se vende.
Não
se espera que o Congresso Nacional permita, em hipótese alguma, a ocupação de
qualquer parte do território nacional, muito menos por meio de acordo que impõe
uma série de restrições ao Brasil; e, ainda pior, quando se trata de liberação
de área estratégica e de segurança para utilização por nação estrangeira com
forte histórico belicista e intervencionista, que não se submete ao Concerto
das Nações e se recusa reiteradamente a aderir a tratados internacionais.
Referência bibliográfica:
BRASIL. Conhecendo o acordo de salvaguardas
tecnológicas Brasil e Estados Unidos. Brasília: Ministério da Ciência,
Tecnologia, Inovação e Comunicação, 2019. Disponível em
https://issuu.com/mctic/docs/folder_ast.
Acesso em 20 de ago. 2019.
Bobbio, N.
Teoria Geral da Política. Rio de
Janeiro: Campus, 2000.
HEGEL,
G.W. Filosofia do direito. São
Leopoldo: Ed. Unisinos, 2010.
Marx. K. Crítica à filosofia do direito de Hegel.
São Paulo: Boitempo, 2013.
[1] BRASIL, 2019.
[2] Como diz Bobbio
(2000, p. 543), “o Estado tem duas faces, uma voltada para o seu interior, onde
as relações de domínio se desenvolvem entre aqueles que detêm o poder de
estabelecer e fazer respeitar normas vinculantes e os destinatários dessas
normas, e a outra voltada para o exterior, onde as relações de domínio se
desenvolvem entre o Estado e outros Estados. (... Assim) a soberania tem dois
aspectos, um interno e outro externo.” O que nos interessa neste estudo é a
soberania “voltada para o exterior, onde as relações de domínio se desenvolvem
entre o Estado e outros Estados.”
[3] Marx (2013, p.
56).
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