PARTE VII
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NOS DOIS PRIMEIROS ANOS DA
DITADURA MILITAR –CIVIL (1964-1966)
O direito à
liberdade de expressão e opinião
Mesmo com a garantia de liberdade de
expressão e opinião, inscrita na Constituição de 1946 (em vigor à época da
pesquisa, que analisa o período de abril de 1964 a dezembro de 1966), o Supremo
Tribunal Federal mantinha as ações penais movidas contra jornalistas e demais
cidadãos que ousavam expressar suas opiniões, limitando-se a relaxar as prisões
nos casos existentes, como apuramos nos seguintes julgamentos:
a)
Habeas Corpus n.º
40.976, relator Gonçalves de Oliveira, julgamento em 23/09/1964. Acusação:
prática de crime político pelo jornalista Carlos Heitor Cony, incurso na lei de
segurança nacional por ter escrito artigos criticando a atuação dos militares e
dos seus chefes, “provocando animosidade entre e contra as classes
armadas.” O STF entendeu que o acusado
responderia em liberdade, incurso na lei de imprensa (lei especial e
posterior), e não pela lei de segurança nacional (anterior), como pretendia o
Ministério Público. Neste julgamento, o relator do caso manifestou que a
jurisprudência do STF era “no sentido da aplicação aos jornalistas da lei de
imprensa (lei 2.083, de 11/11/1953), e
não da lei de segurança, pelos seus artigos publicados, ainda que o fato seja
também qualificado nesta última lei de segurança do Estado”, como ocorreu nos
julgamentos dos jornalistas Prudente de Morais Neto e João Portela Ribeiro
Dantas, que também foram acusados por “instigação de animosidade entre e contra
as classes armadas”. Outro precedente
citado pelo relator foi o habeas corpus n.º 40.077, impetrado pelo advogado
Sobral Pinto em favor do jornalista Hélio Fernandes, acusado de ter publicado
correspondência secreta do Ministro da Guerra, “protegida por lei e pelos
regulamentos militares.”
b)
Habeas Corpus n.º
42.158, relator Victor Nunes Leal, julgado em 12/04/1965. Acusação: Casal de
professores secundaristas acusados de crime político por terem emitido opinião,
o que foi considerado pelo juiz de São José do Rio Preto como prática de
atividade “subversiva”. O relator não concedeu o habeas corpus para trancar a
ação penal, apesar de a Constituição garantir a liberdade de expressão, porque
“a descrição dos fatos, realmente, deixa dúvida sobre a configuração do crime
imputado, mas não está excluída, de todo, a possibilidade de se comprovar a
atividade subversiva.”
c)
Habeas Corpus n.º
42.182, relator Villas Boas, julgamento em 09/06/1965. Acusação: Estudante de
direito acusado de agitação e atuação para mudar a ordem política e social e de
ser filiado ao partido comunista brasileiro, tendo sido incurso na lei de
segurança nacional. Neste caso, uma particularidade: o relator do processo,
Ministro Villas Boas, apresentou em seu voto vários comentários elogiosos aos
militares e à sua ação política, iniciada formalmente a partir de 1964; porém
concluiu sua decisão pela falta de justa causa da ação penal movida contra o
estudante, que estava preso sob ordem da Justiça Militar, afirmando que o
acusado não deveria responder por crime algum, inclusive na Justiça Comum.
Veja-se o que diz
o relator:
Vitorioso o movimento
anticomunista deflagrado na conservadora província de Minas Gerais, com a
poderosa cobertura das forças do Estado de São Paulo, tornaram aos quartéis os
nossos bravos soldados, missão cumprida, para o desempenho de suas funções
ordinárias, que são as de policiar e não de guerrear.
(...)
Em Minas Gerais, como em
todo o país, insidiosa inoculação nos meios estudantis das chamas das reformas
de base, a pretexto de valorização econômica do trabalho dos camponeses,
exacerbou os ânimos.
O paciente Jair Reis
Filho, presidente do Centro Acadêmico AFONSO PENA (agremiação a que também tive
a honra de presidir), entendeu que devia por aquele órgão em função. E teve a
natural colaboração de muitos colegas, cujos nomes constam da longa denúncia
oferecida à autoridade da IV Região Militar, sediada em Juiz de Fora.
As atividades dos ardentes
e insensatos universitários mineiros, alguns filhos de Magistrados pobres e
todos membros de famílias de tradições religiosas, foram capitulados no
art. 2.o, III, da Lei de Segurança Nacional.
Eles teriam sido
apanhados quando tentavam mudar a ordem política e social estabelecida na
Constituição, mediante ajuda ou subsídio de Estado estrangeiro ou de
organização estrangeira ou de caráter internacional.
Vejamos se isso ocorreu,
lendo a denúncia (lê).
Atenho-me aos fatos
narrados na peça inicial, na qual não vislumbro qualquer notícia de iniciação
da tremenda aggressio operis.
Felizmente, não estamos
sob a incidência de algo semelhante ao Código Soviético, que equipara a
preparação à tentativa.
Nem mesmo podemos
considerar atos preparativos os manifestos acaso lançados em defesa do Governo
então constituído, posto tenhamos apoiado, moral e espiritualmente, o
impacto mineiro-paulista que o derrubou.
Qualquer excesso de
linguagem podemos levar à conta da liberdade de pensamento, que o parágrafo 5.o
do art. 143 da Constituição plenamente assegurava. (...). Ninguém pode ser
punido por ter opinião – repito.
(...)
Quanto ao que se oferece
no momento, verifico, com prazer, que Jair Reis Filho não cometeu crime que o
obrigue a responder perante a Justiça Militar, nem pelos fatos apontados
incidiu em infração que o vincule a processo por qualquer outro órgão do Poder
Judiciário.
Eis por que, concedo a
ordem de habeas corpus, por falta de justa causa para a ação penal.
Que vá em paz e não peque
mais contra os interesses vitais da Pátria em comum.”
Observe-se a persistência do relator, ao fazer, em seu voto, referência à
legislação penal soviética para afastar as acusações contra o estudante
indiciado, bem como ao desenvolver um longo voto – a princípio em defesa dos
valores tradicionais da família e do movimento que derrubou o governo de João
Goulart – para em seguida afirmar ser livre a manifestação de pensamento nos
termos da constituição, considerando-a incapaz de atentar contra as forças
militares e seu governo; ao final, conclui pela inexistência da prática de
qualquer crime pelo acusado.
Acompanharam o voto do relator pela inexistência da prática de crime os
ministros Hermes Lima e Hahnemann Guimarães.
Porém, o ministro Victor Nunes Leal, num voto essencialmente técnico,
entendeu que:
saber se o paciente
cometeu este ou aquele crime, no caso, demanda exame aprofundado da prova. Mas,
sob outro aspecto, o da competência, não reclama esse exame.
O paciente é acusado de
atividade subversiva e foi classificado no inciso legal que trata dos crimes contra
a segurança do Estado, com o auxílio de potência estrangeira.
Para essa classificação
tenho votado anteriormente e é a orientação do tribunal, que houvesse
especificação de fato concreto, específico, indicativo do auxílio de potências
estrangeiras. A não ser assim, é crime contra a segurança nacional, da
competência comum.
Portanto, concedo a
ordem, em parte, para cessar a prisão preventiva, por incompetência da Justiça
Militar.
Quanto à existência, ou
não, de justa causa, é prematura essa indagação. Não tenho elementos para
afirmar, desde logo, que não houve atividade delituosa. Mas estou convencido de
que não há delito da competência da Justiça Militar.
d)
Habeas Corpus n.º
42.397, julgado em 21/06/1965, relator Evandro Lins e Silva, que conduziu o voto
vencedor em relação ao relator originário Pedro Chaves. Acusação: Jovens presos em flagrante, “na calada da
noite”, com cartazes e panfletos para protestar contra o envio de tropas
militares para São Domingos/República Dominicana. O relator original do caso,
Ministro Pedro Chaves, denegava a ordem e mantinha os acusados presos. Em seu
voto manifestou adesão e defesa ao “movimento de 31 de março de 1964”, sendo
contra a liberdade de expressão:
A constituição garante a
liberdade de pensamento e de transmissão deste pensamento; garante a propagação
de ideias, garante tudo, enfim. Mas não institui, como regime, uma
democracia suicida. A democracia também tem o direito de se defender.
Usando esse direito de defesa é que o Movimento de 31 de março depôs o Governo
anterior. E agora, Governo, que assumiu as posições do anterior, sob o lema
democrático, para restaurar a prática democrática, não pode ficar de braços
cruzados, vendo operários, estudantes ou professores ou políticos mesmo de alto
prestígio avocarem a si o direito de resolverem as questões e os atos da
política internacional do País. Não é o Congresso Nacional, não é o Estado
Maior das Forças Armadas, não é o Conselho da República que deliberam. São
esses rapazes e essas mocinhas, que ficam aqui num apartamento conspirando.
Eles é que acham se é conveniente ou não para a política exterior do País a
remessa de forças pra São Domingos, se o Presidente Castelo Branco deve
continuar ou se deve ser deposto. Tudo isto escapa aos órgãos democráticos
instituídos pela Constituição e passa a ser uma brincadeira de estudantes?
(...)
Já é tempo de pôr um
paradeiro nessa atuação. O brasileiro é digno, é livre e lhe está assegurada,
pela Constituição, a manifestação de seu pensamento, de suas ideias, de seus
pontos de vista políticos, está-lhe assegurado esse direito de defender ideias,
de discuti-las, mas não na clandestinidade, não no escuro da noite, mas
publicamente, sob o império da Constituição.
O ministro Victor Nunes Leal seguiu o mesmo caminho do relator originário,
Pedro Chaves, para negar o habeas corpus, sob
o seguinte argumento:
Não se põe dúvida que a
Constituição garante a liberdade de pensamento, em termos amplos, desde que não
se traduza em atividade conspiratória. E não há nenhum assunto vedado ao
exercício da liberdade de pensamento. A política externa também é objeto de
livre debate, tanto pelos órgãos do Governo – o Congresso, o Parlamento, o
Conselho de Segurança Nacional -, como por qualquer cidadão. (...) não há
assunto vedado à livre crítica, seja ele de política interna, seja ele de
política externa.
No caso, porém, os
paciente são acusados de não se limitarem ao exercício do seu direito de pensar
e de exprimir seu pensamento. Estariam organizando (seriamente ou não, como
disse o eminente relator) não sabemos ainda, embora, provavelmente não tivessem
condições de o fazer a sério), estariam organizando, em atividade
conspiratória, um movimento para depor o Governo. E a deposição do Governo,
pela força, é crime contra a segurança nacional.
O ministro Gonçalves de Oliveira, em seu voto, rebateu a manifestação de
Victor Nunes Leal e afirmou que: “A questão da deposição do Governo não foi
acreditada nem mesmo pelo Ministério Público.”
Prevaleceu o entendimento de que a prisão deveria ser relaxada por excesso
de prazo, conforme voto conduzido por Evandro Lins e Silva:
A regra geral,
estabelecida na lei de segurança, é que o cidadão responde a processo em
liberdade.
(...)
Há trinta dias de prisão.
Parece-me que são pessoas sem significação social, que podem ficar em
liberdade, com a obrigação de permanecerem no local, em Brasília, até o
julgamento do processo, na forma do art. 43 da Lei de Segurança.
Como se vê, mesmo sendo reconhecida a liberdade expressão, o Supremo
Tribunal Federal optou em manter os acusados respondendo pelo processo em
liberdade, ao invés de determinar a extinção da ação penal.
Na próxima postagem prosseguiremos com a
atuação do Supremo Tribunal Federal, entre abril de 1964 a dezembro de 1966.
Revelaremos que o Tribunal já tinha conhecimento de casos de tortura em 1964 e
da existência de uma guerrilha na região do Araguaia, desde 1963.
Demonstraremos também o julgamento de estrangeiros realizado pelo Tribunal e o
envolvimento indireto do STF na Operação Condor, no julgamento de cidadão paraguaio
preso no Brasil para favorecer a ditadura militar do Paraguai, em 1965.
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