PARTE V
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NOS DOIS PRIMEIROS ANOS DA
DITADURA MILITAR –CIVIL (1964-1966)
A Justiça
Militar julgando civis
Contrariamente aos casos relacionados na última postagem (em que apenas 15%
dos processos examinados culminaram com as ações penais extintas ou trancadas
pelo Supremo Tribunal Federal), nos pedidos de habeas corpus com decisões
favoráveis pela decretação da liberdade, geralmente os acusados continuavam
a responder perante a Justiça Comum e até mesmo na Justiça Militar, que
não tinha competência para julgar civis, o que somente veio a ocorrer a partir do Ato
Institucional número 2 (AI-2), de 27 de outubro de 1965.(BRASIL, 1965)
No período
entre 01 de abril de 1964 a outubro 1965, em 24% dos casos examinados
encontramos acusações formuladas contra civis julgados pela Justiça
Militar, sem que o Supremo Tribunal Federal tenha declarado formalmente a
incompetência daquela justiça.
Com efeito, muitos desses
julgados foram proferidos pelos três ministros cassados pelo Ato Institucional
05 (AI-5), Victor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva e Hermes Lima; sendo que
estes dois últimos receberam crítica formal no relatório apresentado pela
Comissão Nacional da Verdade, em consequência dos votos por eles proferidos
no habeas corpus n.º 41.879, no qual se manteve a Justiça Militar competente
para julgar civis. (BRASIL, Comissão Nacional da Verdade, 2014, p. 939, item 19
do relatório)
O Supremo Tribunal Federal, entre
abril de 1964 a outubro de 1966, entendeu que a Justiça Militar seria incompetente
para o julgamento de civis, como ocorreu no julgamento do habeas corpus n.º
40.974, na acusação formulada contra o professor Ruy Mauro de Araújo Marini por
prática de crime político, a que estava respondendo na Justiça Militar. O relator do processo, ministro Antônio
Villas Boas, em julgamento ocorrido em 01/10/1964, decretou a incompetência da
justiça militar para processar crime de natureza política contra civis.
O mesmo também ocorreu, por exemplo,
no julgamento do habeas corpus n.º 42.394, sob a relatoria de Hahnemann
Guimarães, em que um professor era acusado de ser um “perigoso incrementador da
doutrina comunista no meio estudantil”, em processo que tramitava na Auditoria
Militar da 4.a Região/Juiz de Fora. No caso, foi decretada a
incompetência da Justiça Militar para julgar a ação formulada contra o
professor, segundo o voto do relator.
Porém, o ministro Victor Nunes Leal
(que, ao contrário de Hermes Lima e Evandro Lins e Silva, não recebeu
crítica no relatório final da Comissão Nacional da Verdade) foi relator nos
seguintes casos, em que manteve a competência da Justiça Militar para o
julgamento de civis:
a)
Habeas Corpus n.º
41.019 (juízo ordinário/autoridade coatora: Auditoria Militar de Pernambuco),
julgado em 15/10/1964, ou seja, quinze dias após o habeas corpus concedido em
favor do professor Ruy Mauro Marini, acima mencionado. Acusação: sujeito preso
por decisão da justiça militar, mediante a imputação de ser “comunista,
agitador no meio estudantil, participando de reunião na Prefeitura de Natal, no
dia 1.o de abril de 1964.” O relator Victor Nunes Leal concedeu o
habeas corpus apenas para relaxar a prisão por excesso de prazo, mas não foi
decretada a incompetência da Justiça Militar para o julgamento de civil nem foi
considerada a falta de justa causa para a acusação. Porém, o acusado
continuaria respondendo pelos delitos na Justiça Militar, pois, na visão
técnica do ministro Victor Nunes Leal, não tinha sido possível aferir a falta
de justa causa da acusação.
b)
Habeas Corpus n.º
41.263 (juízo originário/autoridade
coatora: Superior Tribunal Militar) julgado em 25/11/1964. Acusação: civis
presos por ordem da Justiça Militar, sob o argumento de que teriam violado a
ordem política. Ordem de soltura deferida pelo relator Victor Nunes Leal apenas
por excesso do prazo da prisão preventiva, sendo recusada a análise da
incompetência da Justiça Militar – que decretou a prisão dos acusados – sob a
alegação de que não teria sido proposta ainda a ação penal, tendo sido recusada
também, pelo relator, a alegação de falta de justa causa da acusação, “por
falta de elementos.”
c)
Habeas Corpus n.º
41.278 (juízo originário/autoridade
coatora: Auditoria Militar de Santa
Maria/RS), julgado em 07/04/1965. Acusação: Participação em atividades
comunistas. O relator Victor Nunes Leal
não decretou a incompetência da justiça militar para o julgamento do civil e
apenas concedeu o habeas corpus para o acusado responder em liberdade. No caso,
a justiça militar entendeu que se tratava de crime militar porque o comunismo atentava
contra a segurança externa do país. O relator omitiu-se de enfrentar este
ponto, questionado no habeas corpus, que era também pela incompetência da
justiça militar e pela falta de fundamentação da prisão preventiva.
Contudo, no julgamento do habeas corpus n.º 41.892, em 24/03/1965, em caso
contra bancário acusado de ser comunista e que teve a prisão preventiva
decretada pela Auditoria Militar da Bahia, o ministro Victor Nunes Leal, com
base nos julgamentos ocorridos em 17/03/1965 (no HC n.º 42.002), entendeu ser
incompetente a Justiça Militar para decretar prisão por crime político. Por
esta razão e também pelo excesso de prazo da prisão, concedeu a ordem neste
processo, o que não era comum, conforme os casos examinados.
Os ministros Hermes Lima e Evandro
Lins e Silva, confirmando a crítica da Comissão Nacional da Verdade em seu
relatório (BRASIL, Comissão Nacional da Verdade, 2014, p. 939, item 19 do
relatório), mantiveram a competência da Justiça Militar para o julgamento de
civis, como ocorreu também no habeas corpus n.º 42.393, julgado em 18/08/1965,
no qual a acusação apresentada foi de conspiração “para mudar a ordem” e
tentativa de “reorganizar associação ilegal”. Neste caso, o relator do processo
foi Hermes Lima, que manifestou em seu voto: “Sr. Presidente, nego a ordem. Em
tese, a competência para julgar os crimes de que são acusados os pacientes é da
justiça militar”. Em igual medida, assim
se posicionou Evandro Lins e Silva:
Teremos que verificar se
o fato constitui crime de competência da Justiça Militar, ou não, porque se
trata de civis submetidos à Justiça Militar.
Com estas considerações,
adiro à conclusão do voto do eminente Ministro Relator.
Todavia, enquanto juiz relator,
Evandro Lins e Silva entendeu ser incompetente a Justiça Militar nos seguintes
casos julgados, respectivamente, em 04/08/1965 e 20/09/1965:
a)
Habeas corpus n.º
42.457, em que funcionários da empresa Mafersa (Empresa Industrial de Material
Ferroviária S/A) foram acusados de serem comunistas e o relator entendeu que deveriam
responder perante a Justiça Comum, por incompetência da Justiça Militar.
b)
Habeas Corpus n.º
42.663, em que a acusação foi de “subversão da ordem no País, no Rio Grande de
Norte”. Neste caso, o Ministro Evandro Lins e Silva concedeu “a ordem para declarar
a incompetência da Justiça Militar” e decretou a “competência da justiça comum,
para processar e julgar os pacientes”.
A partir da entrada em vigor do Ato Institucional 02 (AI-2), em 27/10/1965[1],
o STF, como ocorreu no julgamento do habeas corpus 42.730, julgado em
02/12/1965, relatado pelo ministro Evandro Lins e Silva, passou a considerar
competente a justiça militar para julgamento de civil por acusação de crime
político.
Nesse ponto, vale ressaltar que, no período pesquisado, ao contrário do que
ocorrera na Ditadura do Estado Novo de Vargas, em que as decisões do Tribunal
de Segurança Nacional foram questionadas (Teixeira da Silva, 2008, p. 296-297 e
306), não houve no Supremo Tribunal Federal resistência ou mesmo recusa formal
ao AI-2.
Antes mesmo do início do ano de 1969 (após a vigência do AI-5, de
13/12/1968), ainda durante os primeiros dois anos da ditadura militar no
Brasil, como foi objeto desta pesquisa, o Supremo Tribunal Federal se
subjugou plenamente na “condição de ator secundário”, como teria manifestado a
Comissão Nacional da Verdade em seu parecer final. (BRASIL, Comissão Nacional
da Verdade, 2014, p. 956)
Na próxima postagem prosseguiremos com a
atuação do Supremo Tribunal Federal, entre abril de 1964 a dezembro de 1966,
onde demostraremos que integrantes do STF à época subscreveram ordenamentos da ditadura militar-civil
e se renderam a ideia de sustar uma suposta ordem comunista no Brasil.
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[1] Com a decretação do Ato Institucional 02, de 27
de outubro de 1965 (AI-2), a Justiça Militar teve sua competência estendida sobre civis nos casos de crimes contra a segurança nacional
ou instituições militares (artigo 8.o,
BRASIL, 1965)
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