COMO ROMPER COM UM PASSADO QUE AINDA SE MANIFESTA
PRESENTE?
A busca da verdade sobre a última ditadura, no Brasil, ainda está muito
restrita aos vetos apresentados
por agentes militares e policiais que serviram ao regime de exceção de 1964 a 1985,
sendo voz corrente e manifesta que o Brasil, “até meados de 2012, (foi) o único
país da América Latina em que nenhum militar ou policial envolvido com esses
crimes (da ditadura) chegou ao banco dos réus”. (D’Araújo, 2013, p. 25)
Porém (e apesar de uma parcela da sociedade brasileira dirigir toda sua energia
à tentativa de punição dos militares que, comprovadamente, tenham participado
de ações relacionadas à tortura e outros delitos), pouca ou nenhuma responsabilidade
tem sido cobrada das instituições civis
(empresários, religiosos, parlamentares, magistrados, promotores de justiça,
advogados públicos, professores universitários etc.) que colaboraram ou facilitaram, de alguma forma, com a implantação das ditaduras no país;
seja nos anos de 1937/1945 (Estado Novo do Governo de Getúlio Vargas) ou
durantes os anos de 1964/1985 (regime militar-civil).
No caso brasileiro, agentes públicos civis que
atuaram no antigo regime permaneceram tranquilamente em suas posições, sem que
tenha ocorrido uma purga ou ruptura oficial com o passado.
Por exemplo, a Constituição de 1988 manteve nos
cargos públicos todas as pessoas que ingressaram na Administração Pública, sem
concurso, cinco anos da sua promulgação.[1]
Em conseqüência, um grande número de agentes beneficiados pelo apadrinhamento
político durante o regime ditatorial de 1964 a 1985 foram preservados nas suas funções públicas;
sem que o Estado brasileiro tenha feito, deste modo, um saneamento efetivo do
seu passado ditatorial, que se transpôs
à democracia na figura de agentes do antigo regime, que continuaram ativamente
em seus cargos públicos.
Diante dessa constatação, é possível estabelecer a hipótese de que os
reacionários do passado possam estar atuando no presente, diretamente ou por
intermédio de seus descendentes (herdeiros ou legatários), na pregação
moralista que tomou conta do Brasil nos últimos anos.
Nesse cenário, é natural que proponham, pela via da politização da
justiça, a cassação e a prisão dos que antes lutaram contra o autoritarismo do
antigo estado de exceção; enquanto, por outro lado, são assegurados e mantidos
impunes pela sociedade muitos agentes civis que participaram ou colaboraram com
a ditadura, num traço típico do patrimonialismo brasileiro, que Victor Nunes
Leal (2012, p. 60) descreve como “filhotismo”.
Com efeito, não é possível estabelecer uma
verdadeira ordem democrática sem depurar ou sanear as instituições que
colaboraram com o passado autoritário. E, tanto a partir de 1945 como depois de
1985, o Brasil passou da ditadura para a
democracia sem romper formalmente com as forças dos regimes antecessores.
A propósito, é importante ressaltar que instituições civis,
como os Poderes Legislativo e Judiciário e o Ministério Público, tinham em suas
fileiras agentes a serviço ou colaborando, de alguma maneira, com o antigo
regime. Muitos desses agentes políticos conseguiram renovar seus mandatos ou
continuaram no pleno exercício de suas funções institucionais na nova ordem
democrática, estabelecida a partir de 1985.
Em consequência disso, é bastante provável que muitos
agentes dos Poderes Legislativo e Judiciário e do Ministério Público (cuja
atuação durante a ditadura de 1964/1985 ainda não foi examinada) também possam
exercer vetos à apuração e reconstituição do passado de autoritarismo e
arbítrio do estado de exceção, por meio da imposição de uma Lei de Anistia (Lei
6.683/79, BRASIL, 1979). Assim, fica patente que é um equívoco limitar as
críticas apenas ao comportamento dos militares, como fez D’Araújo (2013, p.
25).
Por isso, entendemos que deve ser estudado também o
comportamento das referidas
instituições, uma vez que (assim acreditamos), muitas atitudes e
manifestações de alguns dos seus atuais membros decorrem da tradição na qual
foram instruídos e educados pelos senhores que atuaram e serviram ao regime
anterior, que não foi purgado ou saneado completamente.
A propósito, Rezola (2013, p. 177)
esclarece que na Espanha “decidiu-se pela amnistia e por um esquecimento quase
institucionalizado no que diz respeito à Guerra Civil e à Ditadura Franquista”.
Portugal, por outro lado,
tentou sanear o passado do regime de Salazar com “o afastamento de todos
os que tivessem servido ou exercido cargos de responsabilidade e direção na
ditadura”. Era o que desejava, em abril de 1974, o Ministro da Justiça Salgado
Zenha, que não conseguiu levar adiante sua proposição de forma mais contundente,
tendo em vista a ação do primeiro ministro português Adelino da Palma Carlos,
que entendia que as coisas deveriam ser mais moderadas, como de fato se
sucedeu. (Rezola, 2013, p. 181)
Esta acomodação foi percebida e confirmada por Rezola (2013, p. 211), na
conclusão da sua pesquisa sobre o saneamento dos tribunais políticos do
salazarismo (principalmente o Tribunal Criminal Plenário) e dos agentes que
atuaram neste tribunal e continuaram na magistratura após o 25 de abril de
1974, uma vez “que os juízes dos tribunais não sofreram qualquer punição”.
(Pimentel e Rezola, p. 15)
Ao longo dos anos sessenta
a oitenta do século passado, os países da região do Mercosul foram tomados por
golpes de estado, seguidos da implantação de ditaduras militares-civis, cujos
efeitos reverberam até hoje em suas instituições políticas e sociais.
No Brasil, a Comissão Nacional da Verdade, instituída pela Lei Federal
12.528, de 18/11/2011 (BRASIL, 2011), concluiu que os integrantes do Supremo
Tribunal Federal, à época do regime militar-civil de 1964/1985, “eram cônscios
acerca de quem deveriam servir”. (BRASIL, Comissão Nacional da Verdade, 2014,
p. 957)
O mesmo estado de consciência permanece, uma vez que a manutenção pelo
Supremo Tribunal Federal de uma lei do antigo regime (a Lei de Anistia, Lei
6.683/79) somente beneficia a terrível “política de Estado, concebida e
implementada a partir de decisões emanadas da Presidência da República e dos
ministros militares” (entre 1964/1985), que:
mobilizou agentes públicos para a prática sistemática de detenções
ilegais e arbitrárias e tortura, que se abateu sobre milhares de brasileiros, e
para o cometimento de desaparecimentos forçados, execuções e ocultação de
cadáveres. (BRASIL, Comissão Nacional da Verdade, 2014, p. 963)
Com efeito, anteriormente ao regime militar-civil, instituído no Brasil
em 01 de abril de 1964, o Governo de Getúlio Vargas utilizou-se do Tribunal de
Segurança Nacional para perseguir seus opositores políticos, principalmente a
partir da instituição do Estado Novo (1937/1945).
Portanto, o Poder Judiciário brasileiro teve um relevante papel durante
os regimes de exceção que ocorreram no país. Assim, consideramos importante
avaliar, por meio da pesquisa que estamos realizando, a atuação deste poder
político nas ditaduras brasileiras, para, num segundo momento, realizar um
cruzamento entre as atuações do Poder Judiciário nos países da região do
MERCOSUL e apurar qual foi o posicionamento deste poder constituído durante os
regimes de exceção implantados nas décadas de 1960, 1970 e 1980.
Nesta série, que inauguramos nosso blog, apresentaremos alguns resultados, decorrentes
da pesquisa que estamos realizando, cujo foco principal foram os dois primeiros
anos da ditadura militar-civil brasileira, entre abril de 1964 e dezembro de 1966, nos casos de
julgamentos de crimes políticos realizados pelo Supremo Tribunal Federal, a fim
verificar, se de fato, os juízes
que compunham a Corte à época, “como Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro
Lins e Silva horaram os lugares que ocuparam por conta do seu notável saber e
de sua importante coragem em não se curvar ao estado autoritário”, como manifestaram
Ferreira e Fernandes (2013, p. 30)
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[1]
Artigo 19 dos Atos das Disposições
Constitucionais Transitórias: “Os servidores públicos civis da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, da administração direta,
autárquica e das fundações públicas, em exercício na data da promulgação da Constituição, há pelo menos cinco
anos continuados, e que não tenham sido admitidos na forma regulada no art. 37
da Constituição (mediante concurso publico), são considerados estáveis no
serviço publico.”
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