Pular para o conteúdo principal

SÉRIE OS TRIBUNAIS NAS DITADURAS BRASILEIRAS III

PARTE III

O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NOS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA BRASILEIRA (1964/1966)

Na atualidade, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido considerado um importante protagonista político, que recebe grande destaque dos meios de comunicação e de importantes segmentos  da sociedade, em consequência de decisões que tem proferido sobre matérias polêmicas. Como exemplo, citamos o reconhecimento da união civil de pessoas do mesmo sexo, o direito de utilização de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas, a possibilidade de interrupção da gravidez de fetos anencéfalos e o direito de acesso às universidades públicas por meio de cotas sociais.
Contudo, apesar de todo o destaque atribuído ao Poder Judiciário, consideramos importante verificar as posições adotadas pelo STF durante os primeiros anos da ditadura de 1964/1985, particularmente no período entre 01 de abril de 1964 a 31 de dezembro de 1966 (antes da entrada em vigor da Emenda Constitucional número 1, de 1967), para apurar a atuação do tribunal nas acusações de crimes políticos formuladas contra brasileiros e estrangeiros.
Como objetos específicos da investigação, procuraremos observar se, no referido período, (i)  a atuação do Supremo Tribunal Federal foi em defesa das garantias individuais, como a liberdade de expressão, de pensamento e de locomoção; (ii) se houve a garantia do julgamento de civis pela Justiça Comum; e, (iii) também, qual foi o posicionamento adotado pelo tribunal nas ações movidas contra estrangeiros presos no país, sob a acusação de crimes políticos.
Foi adotada como hipótese de pesquisa a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal ter colaborado para o recrudescimento da ditadura militar no Brasil [a partir do início do ano de 1969, com a entrada em vigor do Ato Institucional 05 (AI-5), de 13/12/1968], em consequência da omissão de seus membros em reagir de forma mais contundente contra as violações dos direitos fundamentais e da ordem jurídica, praticadas nos dois primeiros anos da ditadura, instalada a partir de 1.o de abril de 1964.
A investigação se deu, de forma qualitativa, mediante a análise de conteúdo de trinta e cinco (35) acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal, nos julgamentos dos denominados “crimes políticos”, durante o período entre abril de 1964 a dezembro de 1965.
É importante salientar a existência de teses de doutorado e dissertações de mestrado, em certa medida recentes, que procuraram analisar a influência do aparato desenvolvido pelo regime militar, com base na doutrina da segurança nacional, na formulação do pensamento do direito e da legislação brasileira, entre os anos de1964 a 1969, como fez França (2009).
Além disso, a pesquisa desenvolvida por Paiva (2013) descreveu a utilização do Poder Judiciário brasileiro como forma de punir os opositores do regime militar, instalado a partir de 1964.
Referimo-nos também à dissertação de Valério (2010), sob o título “A toga e a farda: o Supremo Tribunal Federal e o Regime Militar 1964-1969”, que tomou como objeto a relação desenvolvida entre o Supremo Tribunal Federal e o Poder Executivo, controlado pelos militares desde abril de 1964. Nesta pesquisa, por meio dos acórdãos proferidos pelo STF entre 1964 e 1969, procurou-se demonstrar que o Supremo Tribunal Federal concedeu vários habeas corpus favoráveis aos “inimigos da Revolução”.
Outro ponto de investigação relacionado ao tema foi observado por Pedrós (2005), que examinou “a subordinação do Poder Judiciário à Justiça Militar”, como ocorreu na ditadura civil-militar do Uruguai, no período entre 1968 a 1985.
Com relação à atuação da Justiça Militar e sua influência no período da ditadura militar brasileira, temos a dissertação de mestrado desenvolvida por Alves (2009) sobre o julgamento de civis pelas auditorias militares no Estado do Rio Grande Sul, entre 1964 a 1978, bem como o estudo de Guazzelli (2009), que procurou revelar que a Justiça Militar, ao mesmo tempo em que julgava os opositores ao regime ditatorial, emprestava “uma fachada legal e democrática” ao regime, que era legitimado pelas defesas apresentadas pelos advogados dos presos políticos.
Em nossa pesquisa analisamos como se comportou o Supremo Tribunal Federal nos primeiros anos da ditadura, entre abril de 1964 a dezembro de 1966, período em que a maioria dos ministros que atuavam na Corte havia sido nomeada em governos anteriores (BRASIL, STF, 2012), durante o regime democrático de direito da Constituição de 1946, mas que se valeram de um excessivo rigor tecnicista para não enfrentar o regime militar e seus possíveis desmandos, por meio de prisões arbitrárias e investigações inquisitoriais, promovidas mediante Inquéritos Policiais Militares (IPM), realizados em quartéis das Forças Armadas.
A omissão do Supremo Tribunal Federal em enfrentar com rigor as ilegalidades do regime militar nos anos iniciais da ditadura (1964/1967) pode ter sido um teste para o agravamento da ditadura nos anos posteriores, como passaremos a demonstrar nas postagens seguintes.


Bibliografia:

ALVES, Taiara Souto. Dos quartéis aos tribunais: a atuação das auditorias militares de Porto Alegre e Santa Maria no julgamento de civis em processos políticos referentes às leis de segurança nacional (1964-1978). 2009. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.
BALZ, C.C. O Tribunal de Segurança Nacional: aspectos legais e doutrinários de um tribunal da Era Vargas (1936-1945). Florianópolis: dissertação, Centro de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, 2009. Disponível em https://www.repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/92317/269346.pdf?sequence=1  Acesso em: 21 nov. 2014.
BRASIL. Lei n. 38, de 04 de abril de 1934. Define os crimes contra a ordem política e social. Diário Oficial da União, Seção 1, Brasília, 8 abr. 2005.  Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1930-1939/lei-38-4-abril-1935-397878-publicacaooriginal-1-pl.html. Acesso em: 17 jun. 2015.
BRASIL. Decreto Legislativo número 06, de 18/12/1935. Diário Oficial da Câmara dos Deputados, Rio de Janeiro, 19 dez. 1935. Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decleg/1930-1939/decretolegislativo-6-18-dezembro-1935-532805-publicacaooriginal-15177-pl.html Acesso em: 21 jul. 2015.
BRASIL. Lei n. 244, de 11 de setembro de 1936. Institui, como órgão da Justiça Militar, o Tribunal de Segurança Nacional, que funcionará no Distrito Federal sempre que for decretado estado de guerra e dá outras providencias. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 12 set. 1936. Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1930-1939/lei-244-11-setembro-1936-503407-publicacaooriginal-1-pl.html  Acesso em: 16 mai. 2014.
BRASIL. Decreto-lei n. 88, de 20 de dezembro de 1937. Modifica a Lei 244, de 11 de setembro de 1936, que instituiu o Tribunal de Segurança Nacional e dá outras providencias. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 24 dez. 1937. Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-88-20-dezembro-1937-350832-publicacaooriginal-1-pe.html Acesso em: 15 jun. 2015.
BRASIL. Decreto-lei n. 1.393, de 29 de junho de 1939. Modifica o Decreto-lei n. 1.261, de 10 de maio de 1939. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 17 jul. 1939. Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-1393-29-junho-1939-348691-publicacaooriginal-1-pe.html Acesso em: 17 jun. de 2015.
BRASIL. Atos Institucional 02, de 27 de outubro de 1965. Mantém a Constituição Federal de 1946, as Constituições Estaduais e respectivas Emendas, com as alterações introduzidas pelo Poder Constituinte originário da Revolução de 31.03.1964, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 27 out. 1965. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-02-65.htm. Acesso em: 13 dez. 2014.
BRASIL. Lei 6.683, de 29 de agosto de 1979. Concede anistia e dá outras providências.
Diário Oficial da União, Brasília, 28 ago 1979. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6683.htm Acesso em: 25 nov. 2014.
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, 05 out. 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20 abr. 2015.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Composições plenárias do Supremo Tribunal Federal (recurso eletrônico). Supremo Tribunal Federal, Brasília: STF, 2012.
BRASIL. Comissão Nacional da Verdade, Relatório, Brasília: CNV, 2014. Disponível em http://www.cnv.gov.br/index.php/outros-destaques/574-conheca-e-acesse-o-relatorio-final-da-cnv Acesso em: 11 dez 2014.
CARVALHO, Claudia Paiva. Intelectuais, cultura e repressão política na ditadura brasileira (1964-1967): relações entre direito e autoritarismo. 2013. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de Brasília, Brasília, 2013.
D’ARAÚJO, Maria Celina. Memória de democratização e amnistia no Brasil. In (orgs) PIMENTEL, Irene Flunser e REZOLA, Marcia Inácia. Democracia, ditadura: memoria e justiça política.  Tinta Chinesa: Lisboa, 2013.
FERREIRA, Siddharta Legale e FERNANDES, Eric B. O STF nas Cortes de Victor Nunes Leal, Moreira Alves e Gilmar Mendes. Revista Direito GV 17, São Paulo, 9 (1), jan-jun 2013, p. 23-46.
FRANÇA,  Andréa da Conceição Pires. Doutrina e legislação: os bastidores da política dos militares no Brasil (1964-1985). 2009. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
GUAZZELLI, Dante Guimaraens. A lei era a espada: a atuação do advogado Eloar Guazzelli na Justiça Militar (1964-1979). 2011. Dissertação (Mestrado em História) - – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.
HUNGRIA, N. A lei de segurança nacional. Archivo Judiciário, Rio de Janeiro, v. 34, abr.-jun. 1935.
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto – o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
NUNES, D. O Tribunal de Segurança Nacional e o valor da prova testemunhal: o debate sobre o princípio do livre convencimento do juiz a partir do julgamento do processo n. 1.355, Revista Eletrônica Direito e Política, Programa de Pós-Graduação Stricto-sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI, Itajaí, v. 8, n.2, 2o quadrimestre 2013.
PEDRÓS, Enrique Serra. Como el Urugay no hay: terror de Estado e segurança nacional no Uruguai (1968-1985): do pachecato à ditadura civil-militar. 2005. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.
PIMENTEL, Irene Flunser e REZOLA, Marcia Inácia. Democracia, ditadura: memoria e justiça política.  Tinta Chinesa: Lisboa, 2013.
REZOLA, Marcia Inácia. Justiça e transição: os juízes dos tribunais plenários no processo revolucionário português. In (orgs) PIMENTEL, Irene Flunser e REZOLA, Marcia Inácia. Democracia, ditadura: memoria e justiça política.  Tinta Chinesa: Lisboa, 2013.
SILVA, E.L. O salão  dos passos perdidos: depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. Os tribunais da ditadura: o estabelecimento da legislação de segurança nacional no Estado Novo.  In: PINTO, A.C., MARTINHO, F.C.P. (Orgs.), Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2008.
VALÉRIO, Otávio Lucas Solano. A toga e a farda: o Supremo Tribunal Federal e o Regime Militar (1964-1969). 2010. Dissertação (Mestrado em Filosofia e Teoria Geral do Direito) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

VISEU, F. e BIN, B. Democracia deliberativa: leitura crítica do caso CDES à luz da teoria do discurso, Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 42, n.1, jan./feb. 2008.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O povo precisa ouvir a voz do Presidente Lula

Por Jorge Folena   Começo  o artigo de hoje  pel o ensinamento  do fil ó sofo e professor italiano Dom en ico Losurdo ,  que ,   e m seu livro Contra- H istória do Liberalismo  d esnuda  o  regime  liberal que ,   com toda a sua  pretensão de comandar o  mundo , é c onst it uído por  graves contradições ;   pois   não é democrático nem respeita as liberdades fundamentais  e , desde a sua fundação, revelou -se   belicista,  exploratório , violento  e autoritário.  Digo isto porque o governo dos Estados Unidos da América , país que  vende para  os demais   a imagem de “ maior democracia do  glob o ” , sem autorização judicial ou acusação  formal,   impediu  recentemente  que Scott Ritter  (cidadão norte-americano e ex-integrante das forças armadas daquele país)  pudesse viajar para  participar d o  F órum  Econômico ...

QUE CESSE A VIOLÊNCIA NA PALESTINA!

 Guernica, P. Picasso, 1937 Manifestação de Jorge Folena na sessão de 13/12/2023 do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB)   Boa noite! Venho à tribuna do Instituto dos Advogados Brasileiros, nesta última sessão do ano de 2023, para desejar boas festas a todos os associados e seus familiares, a fim de que tenham um bom natal e um ano novo repleto de realizações! Aproveito a opor tunidade e as festas de final de ano para reforçar o pedido de cessar fogo permanente na Palestina, em particular na região da Faixa de Gaza, onde milhares de crianças, idosos, mulheres e civis indefesos estão morrendo e tendo suas casas, escolas, hospitais e espaço público destruídos e expropriados, de modo indevido, injusto e desigual, como reconhecido por organismos internacionais como a ONU, a OMS e a UNICEF! Lamento não termos uma posição clara e contundente sobre tais acontecimentos, ao contrário do que ocorreu no 8 de outubro, quando nos manifestamos imediatamente.   Por isso, peço que a...

GOVERNO LULA SOB ATAQUE: a conspiração lavajatista continua

     Foto de Ricardo Stuckert Por Jorge Folena O Governo Lula ainda não completou 100 dias, não tomou qualquer medida dura contra o mercado financeiro nem conflitou com a classe dominante, porém os lacaios de sempre já disparam sua ofensiva nos meios de comunicação tradicional,  a fim de tentar domesticar o presidente.  Nesta última semana,  entre os dias 20 e 22 de março, a visita de Xi Jin Ping a Vladimir Putin deixou  definitivamente evidente a formação do mundo multipolar e o processo de declínio do império anglo-americano, que ao longo de mais de dois séculos de dominação não apresentou qualquer alternativa de esperança e paz para os povos do mundo; ao contrário, deixou um legado de guerras, destruição, humilhação e exploração. Exatamente ao final daquele encontro e diante dos preparativos para a viagem do Presidente Lula à China, o céu desabou sobre a cabeça do representante do Governo brasileiro, que está sendo atacado pelos lavajatistas plantad...