PARTE VIII
SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL NOS DOIS PRIMEIROS ANOS DA DITADURA MILITAR –CIVIL (1964-1966)
Denúncia de
tortura em 1964
A Comissão Nacional da
Verdade apurou, na atuação da Justiça Militar, a sua “conivência com a tortura
de presos políticos”, sendo “comum que os juízes proibissem que a tortura fosse
mencionada pelos réus, ou, ainda, que a menção indicada por estes fosse
transcrita em ata.” (BRASIL, Comissão Nacional da Verdade, 2014, p. 948).
Na pesquisa, pudemos constatar que
em outubro de 1964 o Supremo Tribunal Federal já tinha conhecimento de prática
de tortura, como foi comunicado pela família de Tarzan de Castro, nos autos
do habeas corpus n.º 40.986, julgado em 29/10/1964, cujo relator foi o ministro
Luiz Gallotti.
Com efeito, Tarzan de Castro foi
acusado de, no ano de 1962, ter participado de “lutas de guerrilha” na cidade
de Dianópolis, no norte do antigo Estado do Goiás (atual Tocantins),
ficando incurso, assim, segundo os militares que pediram sua prisão preventiva,
em crime contra a ordem política por ser “perigoso agitador comunista”.
Acusação mantida pelo Supremo Tribunal Federal para que Tarzan de Castro
respondesse na distante cidade de Dianópolis e não no juízo de Goiânia, onde
residia. Foi negado pelo mesmo Supremo o pedido de falta de justa causa da
acusação. Neste processo, a família do acusado
informou que ele estava “sofrendo torturas físicas e mentais”.
A manutenção de
prisão de estrangeiros no Brasil
Na investigação, analisamos os seguintes casos, relativos a acusações
formuladas contra estrangeiros presos no Brasil:
a)
Habeas Corpus n.º
41.913, relator Victor Nunes Leal, julgado em 17/03/1965. Acusação: Estudante
português, preso administrativamente pelo Ministério da Justiça, acusado de
defender a independência de Angola. O pedido de habeas corpus foi para
determinar a soltura do acusado e impedir sua extradição para Portugal, que
estava sob o regime da ditadura de Salazar. O relator Victor Nunes Leal
manifestou em seu voto, com sua característica visão tecnicista, que:
Certamente, se for decretada a expulsão, não pode o Governo enviar o
paciente para território sob a jurisdição de Portugal, onde é acusado de
atividade subversiva, ligada ao movimento de emancipação de Angola. Sua entrega
às autoridades portuguesas teria as consequências de uma extradição indireta,
mas não solicitada e fundada em crime político, o que a nossa lei não admite,
na mesma linha das convenções internacionais firmadas pelo Brasil. Mas o Sr.
Ministro da Justiça, em suas informações, dá garantias ao Tribunal de que essa
hipótese não ocorrerá (f. 33): “Não se cuida, clara ou disfarçadamente, de
extraditar o paciente, mas, sim, expressamente, se apurada a sua nocividade, em
processo regular, de o expulsar, permitindo-se-lhe sair do Brasil para outro
país que escolher e se dispuser a recebê-lo.”
Ou seja, o relator confiou o destino do acusado estrangeiro, que apenas
defendia a independência de uma colônia portuguesa, nas mãos do Ministro da
Justiça, a um regime ditatorial, que o manteve preso para apurar “a sua
nocividade” e depois disso expulsá-lo do país. E se o Ministro da Justiça
não cumprisse o prometido e entregasse o estudante à ditadura de Salazar, o que
poderia fazer o STF?
b)
Habeas Corpus n.º
43.616, relator Lafayette de Andrada, julgado em 24/10/1966. Acusação: Cidadão
paraguaio acusado de “compra de material
bélico destinado a atos de rebeldia” em seu país de origem. A prisão preventiva foi decretada
“por interesse da Justiça e da Segurança da nossa fronteira e é necessária para
melhor apurar o tráfico de material bélico e os ataques às patrulhas do
Exército e da Marinha”.
Neste caso, as
testemunhas manifestaram que o paraguaio estaria levando as armas compradas
para seu país e para atacar seu governo, como consta no processo. Assim,
segundo a defesa, não poderia ser aplicada a lei de segurança nacional, uma vez
que não estava havendo agressão à ordem política brasileira. O pedido foi
negado e mantido preso o acusado.
Neste caso,
pode-se observar um início de articulação política entre as ditaduras em curso
na América do Sul, como mais detalhadamente vai ser descrita como “Operação
Condor”, como descreve McSherry (2009)[1].
Referências
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2010.
[1]
McSherry (2009, p. 97-98) esclarece que “un documento de los Archivos del
Paraguay, ‘Informe Confidencial n. 751’, de fecha 23 de agosto de 1968,
demonstraba que la unidad de polícia política brasileña, el Departamento de
Ordem Político y Social (DOPS) de São Paulo, pidió la colaboración ese año de
la polícia paraguaya con relación a ‘una red de guerrillas que operaban entre
Assunción y São Paulo’. Estos ejemplos destacaban las raíces iniciales de la
colaboración transnacional para la represión, que prepararon el escenario para
la Operación Cóndor.”
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