Lançamento do livro Os cursos jurídicos no Brasil 190 anos, Instituto dos advogados Brasileiros, 11/098/2017. |
Em 11 de maio de 2017 comemora-se 190 anos de fundação dos cursos jurídicos no Brasil. De minha parte, como professor e advogado militante, tenho observado, com muita preocupação, uma grave limitação no estudo universitário do Direito e, por conseguinte, na formação dos jovens profissionais.
Por
necessidade de sobrevivência em um mundo cada vez mais injusto, em decorrência
da concentração excessiva de capital (como revelado nas pesquisas realizadas
por Piketty e nos ensaios reflexivos de Zizek, dentre os muitos cientistas
sociais e filósofos que tratam desta problemática), a maioria dos jovens vêem no
curso de Direito uma oportunidade para ingressar nos quadros da burocracia
pública que, na área jurídica brasileira, remunera seus profissionais com
vencimentos acima da realidade dos demais segmentos públicos e privados.
A
propósito, um jovem com pouco tempo de formação profissional pode receber
ordenados muito superiores a outros profissionais em final carreira, em áreas
importantes e vitais para a sociedade.
Em uma
sociedade desigual e que privilegia determinadas categorias em detrimento de
outras, esta distorção faz com que, na atualidade, um grande quantitativo de pessoas
busquem os cursos jurídicos com a finalidade exclusiva de aprovação em
concursos públicos.
Tendo em
vista esta perspectiva, os cursos universitários de direito passaram a privilegiar mais o exame legislativo e de
decisões aplicadas pelos tribunais, dedicando muito pouco ou nenhum espaço para
pensar o direito enquanto ciência e do ponto de vista de sua importância para a
transformação da sociedade contemporânea.
Neste
cenário, a maioria dos acadêmicos de
direito foca em seus objetivos imediatos,a fim de suprir suas necessidades
fundamentais e, em um país com tantos e graves impasses políticos, sociais e
econômicos, são empurrados para um mercado de trabalho competitivo e cada vez
mais automatizado, sem espaço para a criação lúdica e a reflexão sobre a
realidade cotidiana.
Ironicamente,
o próprio órgão regulador da categoria, que incentivou a massificação do ensino
jurídico e permitiu a proliferação de faculdades de Direito, agora cria
barreiras para o acesso ao exercício da profissão de advogado, impondo a
exigência de exames de habilitação,cuja ênfase recai no teste repetitivo de
legislação, decisões judiciais e correntes doutrinárias, sem levar em
consideração a capacidade criativa e crítica do futuro profissional.
Na atual
formação do acadêmico de Direito, pouco tempo e incentivo têm sido ofertados
para o aprofundamento da filosofia e sociologia do direito, da economia, da
história e até mesmo da formação do pensamento político brasileiro, disciplina que,
sem dúvida, serviria de base para uma autêntica ciência política nacional,
desprezada na maioria das faculdades de Direito do país.
O
profissional do Direito deve, necessariamente, conhecer a formação cultural e
política do seu povo; sem isto não terá como compreender o funcionamento das
instituições do país, por onde trafega, no dia a dia, no exercício da sua
profissão de advogado, juiz, promotor, policial, professor etc.
Considero
importante destacar dois grandes tratados sobre o pensamento político nacional,
que representaram verdadeiros marcos de inovação do pensamento vigente à época
de sua apresentação à sociedade brasileira, que são “Coronelismo, enxada e
voto: o município e o regime representativo no Brasil” (1949), do jurista Victor
Nunes Leal,e “Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro”
(1958), do ilustre Raymundo Faoro.
Assim,
tirando-se honrosas exceções, pouco ou quase nada se estuda do pensamento
político brasileiro nos cursos de Direito do país. Em decorrência, os
estudantes universitários dessa área não têm a oportunidade de refletir sobre
como o Estado brasileiro foi fundado e como se organizou, sob a perspectiva da
cultura nacional.
Além
disso, nas disciplinas clássicas, como Direito Constitucional, Civil, Penal,
Administrativo, Tributário e Processo, busca-se mais o embasamento teórico na experiência
de outros povos, notadamente os europeus e o norte-americano, cujas
características de formação cultural e política são completamente distintas da
realidade brasileira.
O Brasil,
ao contrário dos países europeus, foi colonizado. Logo, sua realidade é muito
diversa da dos povos colonizadores, que, em pleno século XXI,ainda impõem suas
práticas coloniais, aceitas pacificamente pelas elites colonizadas, mesmo após os
processos de independência, como observou Frantz Fanon em sua obra “Os
condenados da terra” e em outros escritos.
Igualmente,
para se compreender a questão da imposição da cultura do colonizador sobre os
povos colonizados (o que é muito comum na aplicação e estudo do Direito no
Brasil), é importante destacar as pesquisas promovidas pelo grupo indiano de
“Estudos da subalternidade” (Subaltern
studies), liderado pelo historiador Ranajit Guha, que examina a questão da
subalternidade. Da mesma forma, porém bem antes dos indianos, temos os textos
do precursor Antonio Gramsci, que, no início do século XX, em seus Cadernos do
cárcere, tratou de questões relativas às classes ou grupos subalternos, tendo
em vista a problemática observada pela diferenciação de tratamento conferido aos
trabalhadores do norte em relação aos camponeses do sul da Itália, sofrendo
estes últimos um processo de marginalização.
Como
exemplo da subalternidade colonial fortemente presente no Brasil, podemos citar
o debate ocorrido no Plenário do Instituto dos Advogados Brasileiros, em maio
de 2016, a respeito de proposição para se implantar, no país, o semipresidencialismo
como forma de governo.
Na
oportunidade, como relator da indicação apresentada para exame, fizemos severas
críticas à referida proposta[1],
na medida em que seu autor baseou-se exclusivamente na realidade europeia,
tomando como parâmetro os modelos existentes na França e em Portugal, passando
ao largo de qualquer análise ou consideração acerca do pensamento político
brasileiro. Por isso, a mencionada proposição constitui-se em típico caso de
subalternidade (pós)colonial.
Como se
tem constatado, os países europeus e, da mesma forma, os Estados Unidos da
América do Norte, têm passado por profundas crises de representatividade e em
suas instituições políticas, não apresentando novos paradigmas democráticos
legítimos para os povos do mundo.
Ao
contrário,Europa e EUA persistem em promover práticas coloniais e imperialistas
que estão destruindo países inteiros no norte da África e oriente médio,
provocando um gigantesco movimento migratório, que destroça as nações de origem
dos imigrantes e também cria comoção social nas áreas para as quais eles se
dirigem. E, não raro, grupos compostos de mulheres, idosos e crianças órfãs,
fugidos de guerras ocasionadas por disputas econômicas coloniais são rechaçados
e impedidos de ingressar aqui, ali ou alhures.
Nesse
passo,deveria causar grande mal-estar a constatação de que pensadores jurídicos,
elevados a destaque nacional pelos meios midiáticos tradicionais, ainda não se libertaram
dos laços com o colonialismo, que tanto explorou e explora países como o Brasil
e nossos irmãos da América Latina, África e Ásia.
Porém, em
grande medida, este jeito tradicional de pensar apenas reflete a percepção que a
elite brasileira tem do país e do povo e, em decorrência,acredita na repressão como
mecanismo exclusivo para a manutenção do posicionamento social, como realça a saudosa
professora Maria Yeda Linhares:
... não
deixa de ser compreensível a opinião dos dirigentes da Velha República que se
extinguia em 1930 de que a questão social era uma questão de polícia. Não fora
também essa a opinião dos Constituintes de 1823, para os quais a revolta dos
escravos era uma mera questão de ordem pública? Ainda hoje, por setores ponderáveis
da sociedade a questão social como a racial são vistas como circunscritas à
ordem política e social. O mito da democracia e da harmonia entre as classes
sociais do país traduziu a cumplicidade entre o Brasil dos ‘coronéis’ – chefes
políticos locais da Velha República e, na maioria das vezes, portadores de
patentes da Guarda Nacional, meramente honoríficas naquele momento -,
representantes do mundo rural, e o Brasil urbano que daí emergiu,
industrializando-se. Assim, latifúndio e indústria, comércio e sistema
financeiro puseram a seu serviço as instituições repressoras do Estado,
camuflando a discriminação e fazendo propalar o engodo da convivência pacífica,
espécie de apanágio da sociedade brasileira povoada de dominadores bondosos e
dominados silenciosos... (Linhares, M. Y. In: (Orgs) Linhares, M. Y. et. al.
História Geral do Brasil, Rio de Janeiro: Elsevier, 10a edição, 2016,
p. 06)
Pelo acima
exposto por Maria Yeda Linhares, e também conforme manifestado por diversos
pensadores em variadas áreas do conhecimento, verifica-se que o poder é uma
forma de violência, assim afirmado por Marx, Weber, Benjamin, Freud, Sartre,
Fanon, entre outros.
Desta
forma, o Direito, enquanto manifestação de materialização formal e extensão do
poder da classe dominante, é considerado igualmente como violência, representada
por sanções normativas executadas pelo Estado e seu aparelho repressivo
burocrático (polícia, promotoria e judiciário).
Como tal
ponto de análise é pouco examinado nos cursos jurídicos,alguns juristas passaram
a acreditar e manifestar que o Direito poderia se sobrepor à política, o que é
completamente irreal e primário.
Ao
contrário do que temos assistido no Brasil desde 2008, por meio do protagonismo
conferido pela mídia tradicional às instituições burocráticas do aparelho
repressivo estatal,o Direito não se apresenta como transformador da ordem
social; inversamente, serve de manutenção e fortaleza da classe social
dominante.
Será a
política, com seus acertos e desacertos, o palco da lutas e o caminho para as transformações
sociais. Por isso, o acadêmico de Direito necessita conhecer com intensidade, e,
se possível, com profundidade, a política e seus bastidores, na medida em que
seu principal instrumento de trabalho consiste na legislação aprovada pelo
Parlamento.
Vale ressaltar
que, nos cursos jurídicos brasileiros, pouca atenção é dada ao modo de produção
legislativa, que origina as normas que conduzem a sociedade. A esse respeito,
outro grande jurista e intérprete do pensar e agir brasileiro, Osny Duarte
Pereira, analisou e dedicou-se a estudar a formação das leis brasileiras, desde
os seus bastidores até a sanção presidencial, culminando na obra “Quem faz as leis no Brasil”.
Com
efeito, o mestre Osny, na referida obra, desnuda o patrimonialismo nacional,
presente no processo legislativo e demonstra o comportamento colonialista e
subserviente da elite, que se utiliza do procedimento de elaboração das leis no
país para atingir seus objetivos, em detrimento dos interesses do povo.
O exemplo
perfeito e acabado dessa distorção é constatado na atual legislatura (2015-2019),
considerada a pior em toda a história parlamentar republicana do país, uma vez
que foi gestada quase que exclusivamente no financiamento privado de campanha
eleitoral.
Sem
compreender o patrimonialismo nacional, na sua formação caudilhista (ou
coronelista) e nos seus conchavos com os interesses estrangeiros, não dá para
se pensar o Direito nem é possível compreender as origens dos diversos
impasses brasileiros.
Tais
impasses, que se manifestam na falta de oportunidades justas para a maioria
esmagadora da população brasileira, foram agravados com o impeachment de 2016. Com o passar do tempo,o governo que assumiu se
revela cada vez mais perverso e prejudicial aos brasileiros,pois atua de forma
a contemplar inteiramente os interesses financistas estrangeiros.
Nesse
sentido, o grupo que tomou o poder no Brasil manifesta, com todo o cinismo, que
as “reformas” educacional, trabalhista e previdenciária, não discutidas nem
aprovadas pelo sufrágio popular, são necessárias para atrair os investimentos
externos. Quando sabemos, e a experiência nos mostra, que tais “investimentos”
implicam na apropriação de empresas e terras, e as tais reformas, que retiram
direitos importantes dos trabalhadores, têm por intuito exclusivo nos tornar um
atrativo polo de mão de obra barata.
Assim,
aproveitamos as comemorações dos 190 anos de fundação dos cursos jurídicos no
Brasil, para propor a reestruturação e a ampliação da carga horária para o
estudo de disciplinas como filosofia, sociologia, ciência política, economia e
história nacional (na contramão da reforma da educação proposta pelo governo, a
partir do final de 2016/2017), para que os novos profissionais do Direito, além
de conhecer as leis, decisões judiciais e correntes doutrinarias jurídicas (que
são importantes), possam, acima de tudo, compreender a realidade política,
social e econômica do Brasil, a fim de que sejamos capazes de superar o atraso
colonial que ainda impera em nosso país.
[1] Revista Digital
do Instituto dos Advogados Brasileiros, Ano VIII, n. 30, abr-jun 2016, p.
77-83.
Prezado Dr. Jorge Folena,
ResponderExcluirComo professor de escola de ensino fundamental para geografia e história e quando estou nos meus bons momentos, diria, estamos numa etapa deste país, que, tudo parece retroceder. Faço um tipo de terapia... Tenho um Mestre, em termos de meditação. Sem dúvida, o momento requer muita... muita cautela... e... se me permite... nosso viés latino-americano e ibérico, nos impulsiona para a crítica e... talvez... falar demais... Além disso, desde dezembro de 2012, estamos a receber luz e calor de duas estrelas, uma gigantesca(Alcione, constelação das Plêiades, que não vemos nos nossos céus) e o Sol(astro maior deste sistema planetário). Pode parecer que toco em temas esotéricos. Pode ser. Contudo, alguma coisa me diz que, pode haver explicações, diante deste posicionamento do sistema solar, desde dezembro de 2012. Bem, fico por aqui. Desde já meu muito obrigado. Marco