Pular para o conteúdo principal

ESTADO LAICO E PLURALISTA

 

O juízo final, Michelangelo, 1535-1541.


Por Jorge Folena

Num discurso permeado de inverdades (como de costume), proferido na abertura dos trabalhos da Organização das Nações Unidas, em 22 de setembro de 2020, o ocupante da Presidência da República, ao afirmar que o Brasil é um país cristão e conservador, mais uma vez desrespeitou a Constituição.

O presidente desprezou, enquanto Chefe de Estado, a opção das pessoas serem ou não crentes ou professarem outras religiões, que não a cristã; no mesmo passo, negou-lhes também a liberdade de serem progressistas ou defenderem qualquer outra expressão política.

Na verdade, a partir de sua estreita visão, ele pretendeu fazer por extensão uma imagem do que possa ser o coletivo do país, o que constitui grave equívoco para um chefe de poder. Pois, como lhe disse o ministro Marco Aurélio de Mello, na posse do atual presidente do Supremo Tribunal Federal, “o senhor governa para todos os brasileiros”, e não somente para os seus seguidores ou eventuais eleitores.

Ao longo da história, temos visto muitos conflitos deflagrados e alimentados pela intolerância religiosa. De forma contraditória, pessoas que se dizem seguidoras de deidades que pregam amor, igualdade e solidariedade, tomam-se de ódio contra aqueles que passam a enxergar como infiéis e partem, dispostas a atuar com total violência, em novas versões de cruzadas e guerras santas. Foi para evitar a repetição de tantos eventos destrutivos e o controle direto do Estado por entidades religiosas, que as cartas constitucionais modernas passaram a estabelecer a laicidade do Estado e o respeito ao pluralismo de ideias. 

Assim, a partir da Constituição, o Estado laico é aquele que permite a ampla liberdade de consciência e de crença, protegendo inclusive o direito dos que negam a existência de Deus. A laicidade do Estado visa assegurar todas as formas de manifestação religiosa  e a proteção aos locais de culto e suas liturgias, independentemente da crença. Por isso, também garante que nenhuma pessoa pode ser privada de seus direitos por motivo de crença religiosa, filosófica ou política, como é garantido pela Constituição brasileira. 

Num Estado laico, como é a República Federativa do Brasil, é proibido pela Constituição que seus dirigentes e/ou as entidades públicas estabeleçam cultos religiosos ou promovam igrejas específicas, subvencionem ou dificultem o funcionamento de determinada crença ou mantenham relações de dependência ou aliança com uma  delas, de forma a impedir a distinção ou preferências entre brasileiros.

Além disso, é princípio fundamental da República o pluralismo político, que significa que o cidadão tem a liberdade de optar por qualquer escola ideológica, o que lhe confere o direito de ser comunista, liberal, anarquista ou não ser absolutamente nada.

Nesse passo, o presidente que se comprometeu, no ato de posse, a manter, defender e cumprir a Constituição, não poderia jamais, no exercício das suas funções de chefe de Estado, afirmar de forma equivocada que o Brasil é um país cristão e conservador, como se aqui não houvessem outras formas de manifestação religiosa e política.

Com seu ato, desrespeitou os demais brasileiros que não são crentes, cristãos ou conservadores, e, inclusive os que têm o direito de não acreditar na organização do Estado, por convicção filosófica ou política, apesar de estarem obrigados a cumprir as suas leis. Mais uma vez o ocupante da Presidência da República violou a Constituição, e, pelo visto, nada lhe acontecerá.

Para que fosse feita alguma coisa, seria preciso que os integrantes das instituições que compõem o Estado brasileiro recordassem a leitura do documento a que todos juraram obediência, tendo prometido defender a soberania e assegurar a construção de uma sociedade  fraterna, pluralista e sem preconceitos.

Entretanto, entre os muitos integrantes das instituições políticas, militares e burocráticas, a uns nada interessa fazer, pois são molas propulsoras no processo de destruição em curso; enquanto outros, enredados em medos, preconceitos diversos e projetos paralelos de poder, simplesmente não querem recordar seu dever primordial para com o país.

Portanto, se não restabelecermos, imediatamente, um ponto de equilíbrio na sociedade brasileira, de forma a afastar a imobilidade hipnótica engendrada pelo ódio e pela mentira como  projeto de dominação iniciado abertamente desde 2013, continuaremos imersos na tragédia de ver nosso país sendo conduzido ao abismo pelo farsante travestido de flautista de Hamelin, que a pretexto de combater os ratos, trouxe-os para dentro do poder.

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

GOVERNO LULA SOB ATAQUE: a conspiração lavajatista continua

     Foto de Ricardo Stuckert Por Jorge Folena O Governo Lula ainda não completou 100 dias, não tomou qualquer medida dura contra o mercado financeiro nem conflitou com a classe dominante, porém os lacaios de sempre já disparam sua ofensiva nos meios de comunicação tradicional,  a fim de tentar domesticar o presidente.  Nesta última semana,  entre os dias 20 e 22 de março, a visita de Xi Jin Ping a Vladimir Putin deixou  definitivamente evidente a formação do mundo multipolar e o processo de declínio do império anglo-americano, que ao longo de mais de dois séculos de dominação não apresentou qualquer alternativa de esperança e paz para os povos do mundo; ao contrário, deixou um legado de guerras, destruição, humilhação e exploração. Exatamente ao final daquele encontro e diante dos preparativos para a viagem do Presidente Lula à China, o céu desabou sobre a cabeça do representante do Governo brasileiro, que está sendo atacado pelos lavajatistas plantados pelo Departamento de Justiça no

GARANTIA DA LEI E DA ORDEM: incompatível com a República

Proclamação da República, Benedito Calixto, 1893. Por Jorge Folena [1]   Em agosto de 2019, diante das pressões políticas de grupos autoritários e da tentativa de fortalecimento da extrema-direita na Alemanha, foi retomado o debate naquele país sobre “os três erros fundamentais da Constituição de Weimar”, que completava cem anos naquela oportunidade. Os três erros da mencionada constituição seriam os artigos 24, 48 e 53 que, respectivamente, previam em linhas gerais que: (a) o presidente poderia dissolver o parlamento; (b) o presidente poderia, com a ajuda das forças armadas, intervir para restabelecer a segurança e a ordem pública; e (c) a nomeação do primeiro ministro como atribuição do presidente. Como afirma  Sven Felix Kelerhoff [2] ,   essas regras eram “herança da constituição do império”, que a ordem republicana, introduzida em Weimar  em 1919, não foi capaz de superar e possibilitaram a ascensão do nazismo de Hitler, na Alemanha, a partir de 1933. Para nós no Brasil é muito im

INÍCIO DA TEMPORADA DE CAÇA AOS OPOSITORES DO GOVERNO

Caçada na floresta, Paolo Uccello, 1470  Por Jorge Folena [1]   Divirjo totalmente do governador do Estado do Rio de Janeiro, eleito em 2018 na onda da extrema direita, que empregou métodos de propagação de mentiras sistemáticas pela rede mundial de computadores, com forte evidência de abuso de poder econômico, como está sendo examinado pelo Tribunal Superior Eleitoral em relação à chapa vencedora, de forma questionável, na eleição presidencial. O governador do Rio de Janeiro não apresentou, até aqui, qualquer política pública para melhorar a vida da população pobre do Estado, mas incentivou, desde o primeiro dia de seu governo, a continuação de práticas policiais abomináveis e desumanas, tendo sugerido à polícia “mirar na cabecinha” para o abate de seres humano. Contudo, mesmo com todas as divergências contra o governador, não é possível aceitar, com passividade, o seu afastamento do cargo por decisão liminar proferida por um ministro do Superior Tribunal de Justiça; que, em verdade,