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INEXISTÊNCIA DO DIREITO À IGNORÂNCIA

O grande masturbador, Salvador Dalí, 1929.

 Por Jorge Folena 

Em diversas partes do mundo, tem se tornado cada vez mais frequente, nos dias atuais, a existência de grupos de pessoas que defendem uma suposta liberdade de negar o processo de transformação cultural.

Assim, essas pessoas recusam-se a tomar vacinas ou a vacinar seus filhos, a aceitar que a terra seja redonda ou que o homem tenha ido à lua; sua opção é viver na ignorância, recusando-se a crer nos avanços da ciência, que têm permitido aos homens uma vida mais longa e com mais conforto do que poderiam imaginar nossos ancestrais. 

Na atualidade, nos deparamos com chefes de estado e de governo que se colocam abertamente contra o esclarecimento da população e promovem a divulgação de notícias falsas.

Ao longo da grave crise da COVID-19, algumas dessas autoridades têm se recusado a respeitar as normas sanitárias, participando de eventos com aglomeração de pessoas e agindo de modo a incentivar que crianças e idosos burlem a norma que impõe o uso de máscaras em espaço público. Com seu comportamento, esses agentes desafiam as recomendações das autoridades científicas para enfraquecer a eficácias das normas de combate ao coronavírus.

Este texto pretende analisar se existe uma autorização constitucional à ignorância, por extensão do instituto da liberdade, uma vez que muitos integrantes da sociedade parecem optar por agir como um rebanho, que tudo aceita sem questionar e mantém-se fiel à ideia de negação; enquanto isso, os especialistas na manipulação da ignorância alheia aproveitam para tirar vantagens para si e seu grupo, sem preocupações ou escrúpulos acerca dos riscos a que expõem a  coletividade.

Immanuel Kant, em seu texto “Resposta à pergunta: que é esclarecimento?” afirma que “esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso do seu entendimento sem a direção de outro indivíduo”.

Então, ao decidir-se pelo caminho da ignorância e da negação da razão, o ser humano opta por um caminho sem direção, que poderá levá-lo (como ocorreu em diversas passagens da História) à destruição e à morte. Tal comportamento se contrapõe à formação do Estado moderno, fundado para estabelecer a paz e a segurança (Hobbes) e, deste modo, garantir a convivência social. 

Os inescrupulosos que se valem da ignorância e do estado de infantilidade dela decorrente defendem que podem, a partir do direito de liberdade, fazer o que bem entendem, inclusive mediante a propagação de notícias falsas, que distorcem a verdade e criam um ambiente de dúvidas e contradições em temas que alcançam diretamente a vida das pessoas, como vacinar a si e aos filhos, ir à escola etc.

Deste modo, por meio de um alegado exercício da liberdade individual e do direito de escolha, nos deparamos com comportamentos nocivos, que trazem em si a capacidade de destruir a democracia liberal e colocar em risco o funcionamento do próprio Estado burguês.

A teoria do utilitarismo inglês, do século XIX, estabeleceu que a liberdade tem limites e pode sofrer restrições impostas pelo bem comum. Sendo assim, nem tudo é possível ao indivíduo, que, na fruição da sua liberdade, não pode causar mal aos outros integrantes da sociedade.  Neste sentido, John Stuart Mill, em sua obra Sobre a liberdade, afirma que: “O princípio é que a única finalidade que justifica que a humanidade interfira, individual ou coletivamente, na liberdade de ação de qualquer de seus (...) é para evitar que outros sejam prejudicados.”

O incentivo à ignorância transita na confluência do conflito entre a moral e a política, dado que a desonestidade de certos agentes políticos e supostos líderes religiosos nos encaminha a passos largos para o fim da “paz perpétua” proposta por Kant, pois constitui “a vontade de todos os homens individualmente viverem em uma constituição legal de acordo com os princípios da liberdade (a unidade distributiva da vontade de todos)”. 

Ora, defender contra todas as evidências que a terra é plana ou que a COVID-19 não é um risco para a humanidade, por ser apenas “uma gripezinha”, e tampouco apoiar as normas de saúde pública, constitui apego a um comportamento infantilizado, de pessoas acometidas por um egoísmo infame, que a Constituição não protege, pois visa normatizar a existência em sociedade, com vistas ao bem de todos.

Vale ressaltar que o Direito não tolera a ignorância, pois “ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”; da mesma forma, o direito estabelece, na sua aplicação, que “a ignorância da lei não pode confundir-se com o desconhecimento do injusto (ilicitude)”[1], sendo dever das pessoas conhecê-lo no mínimo para conviver harmoniosamente. Caso contrário, começarão, primeiro, por negar a lei da gravidade, as leis da física, as leis da termodinâmica, a ciência, enfim; depois, recusar-se-ão ao cumprimento de qualquer lei que considerem nociva aos seus interesses privados.

A Constituição protege a vida, a pluralidade, o bem de todos, o progresso, a saúde, a educação, a cultura, a ciência, a tecnologia, a inovação; ou seja, todos os avanços que forem necessários e úteis para garantir a dignidade do homem, princípio fundamental da República; não sendo por ela permitidos comportamentos que levem à morte e à destruição, hoje defendidos pelos propagadores da ignorância como estratégia política.

Portanto, a partir da leitura da Constituição, não existe direito à ignorância como derivante do direito de liberdade, na medida em que tudo o que se constituiu pelo pacto firmado em 1988 foi para garantir ao homem uma vida plena (direito natural por excelência) e a manutenção do estado brasileiro.

Com efeito, o direito de culto é protegido pela Constituição enquanto manifestação pessoal de cada um, em sua consciência privada e, por isso, a religião não deve ser imposta como solução para os males sociais, os quais devem ser resolvidos pelo conjunto dos seres humanos, no processo de construção cultural.

Desta forma,  deve ser reprovado todo ato de governantes e indivíduos que neguem a ciência, o conhecimento e a racionalidade, sob pena de a sociedade ser conduzida a uma situação onde imperem a intolerância e o ódio, que não encontram abrigo na Constituição, pois colocam em risco a sociedade, que no passado, constituiu o Estado para que todos os  homens pudessem conviver em paz e harmonia.



[1] STF, AP 595/SC, relator Luiz Fux, julgado em 10/02/2015.

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