Pular para o conteúdo principal

MEMÓRIA, CULTURA E RESISTÊNCIA


Descoberta da terra. Candido Portinari, 1941.

 

Por Jorge Folena

Nos últimos textos apresentados nesta coluna tenho tratado dos temas relacionados à memória e ao esquecimento; sendo este último empregado pela classe dominante brasileira como tentativa de impor um apagamento dos seus malfeitos e a negação das lutas de resistências do povo brasileiro, ao longo da formação do país até os dias de hoje. 

Desde muito tempo tentam convencer o povo brasileiro de que ele é “cordial” e “pacífico”, lhe sendo dito que deve trabalhar para colaborar no progresso do país, como destacado pelo ideal positivista “ordem e progresso”, não por acaso posto na bandeira nacional quando da Proclamação da República (1889).

Naquele momento, a imposição desta filosofia, por meio de acordo das classes oligárquicas dominantes, visava criar uma barreira para impedir a rebelião da maioria da população brasileira, constituída por negros escravizados, que, mesmo após a abolição formal da escravidão (1888) continuaram a não ter direitos e, assim, foram submetidos a um permanente estado de discriminação, desigualdade e injustiça social. 

Aquele ideal continua a justificar a manutenção de uma “ordem” repressora para o povo, a fim de que este não questione o “progresso”, sempre destinado a uma pequena minoria, que se enriquece às custas da exploração do trabalho e impede a mínima distribuição da riqueza nacional para “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades nacionais”, como previsto na Constituição.

Assim, com seu lema “ordem e progresso”, determinado de cima para baixo, a classe dominante tenta retirar do povo brasileiro a noção de lutas de classes (que se tornou aqui uma expressão proibida) para mantê-lo inconsciente da brutal exploração a que está submetido desde os tempos da colônia.

Há quem diga, de forma indevida e desonesta, que os brasileiros são preguiçosos (herança dos povos indígenas) e malandros (herança dos negros escravizados), o que é repetido sistematicamente em livros, jornais e demais meios de comunicação social; sendo esta mentira assimilada por muitos indivíduos pobres, que apenas reproduzem sem questionar o que lhes dizem, sendo assim mantidos na ignorância.

A repetição constante dessas inverdades tem o objetivo de marginalizar a população, para mantê-la acorrentada numa posição de inferioridade e subalternidade, ainda colonial em pleno século XXI, de modo a justificar toda a violência estatal que recai sobre ela. 

Por outro lado, quase nada é propagado a respeito das matanças dos povos originários, dos sacrifícios e crueldades impostos aos escravizado negros e sobre as diversas lutas populares de libertação que foram travadas pelo país ao longo de sua história. 

A classe dominante promove, desde sempre, um constante apagamento da memória nacional, ao mesmo tempo em que procura exaltar como heróis homens que violentaram e mataram nossa população no passado; os mesmos que, nos dias de hoje, promovem o extermínio da juventude negra e pobre das periferias e comunidades faveladas, dos camponeses, quilombolas e grupos indígenas que lutam pela manutenção da posse de suas terras ancestrais e preservação da sua cultura.

Estas comunidades são apresentadas pela classe dominante como lugares de grupos selvagens e perigosos, em que vivem somente malfeitores e pessoas incapazes de construir o progresso e produzir qualquer história e cultura que sejam importantes para o desenvolvimento.

São constantes e muitas as mentiras propagadas contra o nosso povo, negro e pobre, o qual, mesmo explorado ao extremo, é produtor de resistência e capaz de grandes manifestações de solidariedade.

Temos um povo lutador, resistente e solidário, que diante das maiores dificuldades (como visto durante a pandemia da COVID-19, entre 2020-2021) é capaz de se organizar, mesmo de forma improvisada, para compartilhar o pouco que tem entre os que mais necessitam, a exemplo das distribuições de alimentos aos necessitados por todo o país, promovidas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).

No programa Soberania em debate (Movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro) do dia 24 de setembro de 2021, houve a participação da professora Cláudia Rose Ribeiro da Silva, co-fundadora do Centro de Estudos e Ações da Maré (CEASM), organização não governamental, que, desde 1997, se dedica ao trabalho de construção da memória coletiva daquela comunidade, por meio do Museu da Maré, que constitui um espaço em que se conta a formação da comunidade, o dia-a-dia e as lutas de um povo sempre em movimento, resistindo e buscando dias melhores, apesar de todas as dificuldades e da violenta repressão promovida pelo Estado.

É importante dizer que manifestações como essa, organizada na comunidade da Maré e em outras localidades espalhadas pelo país, constituem patrimônio cultural brasileiro, conforme a Constituição, na medida em que são portadoras de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade.

O Museu da Maré é apenas um exemplo, dentre outros, da capacidade de organização popular e da valorização das suas origens e memórias, que integram um valoroso patrimônio cultural e demonstram  as potencialidades latentes nessas comunidades, que lutam todos os dias contra o racismo e o preconceito, ferramentas que justificam uma brutal e injusta concentração de renda, a perpetuar a perversidade de uma exploração secular, em que poucos se beneficiam das riquezas resultantes do trabalho da grande maioria.

 

  

 

 

 

  

 

 

 

 

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

GOVERNO LULA SOB ATAQUE: a conspiração lavajatista continua

     Foto de Ricardo Stuckert Por Jorge Folena O Governo Lula ainda não completou 100 dias, não tomou qualquer medida dura contra o mercado financeiro nem conflitou com a classe dominante, porém os lacaios de sempre já disparam sua ofensiva nos meios de comunicação tradicional,  a fim de tentar domesticar o presidente.  Nesta última semana,  entre os dias 20 e 22 de março, a visita de Xi Jin Ping a Vladimir Putin deixou  definitivamente evidente a formação do mundo multipolar e o processo de declínio do império anglo-americano, que ao longo de mais de dois séculos de dominação não apresentou qualquer alternativa de esperança e paz para os povos do mundo; ao contrário, deixou um legado de guerras, destruição, humilhação e exploração. Exatamente ao final daquele encontro e diante dos preparativos para a viagem do Presidente Lula à China, o céu desabou sobre a cabeça do representante do Governo brasileiro, que está sendo atacado pelos lavajatistas plantados pelo Departamento de Justiça no

GARANTIA DA LEI E DA ORDEM: incompatível com a República

Proclamação da República, Benedito Calixto, 1893. Por Jorge Folena [1]   Em agosto de 2019, diante das pressões políticas de grupos autoritários e da tentativa de fortalecimento da extrema-direita na Alemanha, foi retomado o debate naquele país sobre “os três erros fundamentais da Constituição de Weimar”, que completava cem anos naquela oportunidade. Os três erros da mencionada constituição seriam os artigos 24, 48 e 53 que, respectivamente, previam em linhas gerais que: (a) o presidente poderia dissolver o parlamento; (b) o presidente poderia, com a ajuda das forças armadas, intervir para restabelecer a segurança e a ordem pública; e (c) a nomeação do primeiro ministro como atribuição do presidente. Como afirma  Sven Felix Kelerhoff [2] ,   essas regras eram “herança da constituição do império”, que a ordem republicana, introduzida em Weimar  em 1919, não foi capaz de superar e possibilitaram a ascensão do nazismo de Hitler, na Alemanha, a partir de 1933. Para nós no Brasil é muito im

SEMINÁRIO DITADURA NUNCA MAIS, DEMOCRACIA SEMPRE! O FASCISMO COMO EXPRESSÃO DO FRACASSO CAPITALISTA

Parte da manhã   Parte da tarde 31 de março de 2023 foi um dia de resistência democrática na OAB/RJ, quando foi realizado o Seminário Ditadura Nunca Mais, Democracia Sempre! , organizado pela Comissão de Justiça de Transição e Memória da OAB/RJ. Neste seminário, ao longo de mais de 8 horas, tivemos a oportunidade de recordar, analisar e refletir sobre o sofrimento causado pela ditadura civil, militar e midiática, ocorrida no Brasil entre primeiro de abril de 1964 e 15 de março de 1985. É importante afirmar que a memória é um direito humano fundamental, que não pode ser apagado; por isso, é obrigação do Estado garantir a todo cidadão brasileiro o acesso à informação, para manter viva a memória dos fatos ocorridos no Brasil naquele período, que continuam a se repetir no país nos dias de hoje, com os assassinatos de jovens negros e pobres na periferia das cidades brasileiras. É através do conhecimento do passado que os indivíduos podem compreender e lutar contra a dinâmica dos processos d