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EXTINÇÃO DO MINISTÉRIO DO TRABALHO: um atentado aos Direitos Humanos e à Constituição



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Neste trabalho analiso, sob o aspecto constitucional, a decisão do governo brasileiro de extinguir o importante Ministério do Trabalho e do Emprego, sob o fundamento de que o Chefe do Poder Executivo teria legitimidade para “promover o desenho adequado da estrutura da Administração Pública Federal”, dispondo de autoridade para propor a extinção do referido ministério, como foi confirmado pelo Congresso Nacional, por meio da Lei 13.844/2019, e como autoriza a redação do artigo 48, XI, da Constituição Federal, dada pela Emenda Constitucional nº 32/2001, segundo a qual cabe ao Congresso Nacional dispor sobre a “criação e extinção de Ministérios e órgãos da Administração Pública.”
O Ministério do Trabalho, o Ministério da Fazenda e outros foram transformados no Ministério da Economia (artigo 57, I, da Lei 13.844/19), sendo transferidas para o este novo Ministério a fiscalização do trabalho e aplicação das sanções previstas em normas legais e coletivas, a política salarial, a formação e o desenvolvimento profissional, a segurança do trabalho e a regularização profissional, como previsto no artigo 31, incisos XXXII a XXXVI, da Lei 13.844/2019.
É inegável que a Constituição conferiu ao Chefe do Poder Executivo as atribuições de nomear e exonerar ministros, exercer a direção superior da administração federal e dispor sobre sua organização e funcionamento (artigo 84, inciso I, II e VI, da CRFB).
Igualmente, é da competência do Presidente da República a iniciativa de proposta de lei que trate da extinção de Ministérios (artigo 61, parágrafo 1º, inciso I, alínea “e”, da CRFB), como também cabe ao Congresso Nacional dispor sobre a extinção de Ministérios, conforme previsto no artigo 48, XI, da CRFB, na redação dada pela Emenda Constitucional 32/2001.
Em que pese a possibilidade constitucional de ser proposta e ser aprovada a extinção de Ministérios, a Constituição da República não pode ser lida de forma linear, uma vez que nela coexistem diversos Direitos Fundamentais, que devem ser interpretados sistematicamente, numa hermenêutica constitucional; ainda mais quando relacionada a temas de grande sensibilidade humana e social, que exigem do Estado contemporâneo a imprescindível proteção, a fim de evitar retrocessos civilizatórios.
É importante salientar que a criação do Ministério do Trabalho, no atual período histórico da humanidade ocidental, tem um gigantesco conteúdo político, em certa medida consagrador da hegemonia, que se construiu a partir dos meados do século XIX e se consolidou no século XX, por meio da concessão e da conquista de direitos sociais, de forma a acomodar e pacificar os conflitos sociais. Ou seja, o Ministério do Trabalho tem um conteúdo simbólico, neste cenário, para a construção da paz e do desenvolvimento, servindo como um contraponto da organização dos trabalhadores perante o poder do capital; de modo a se estabelecer um ponto de equilíbrio das forças políticas e sociais.
Então, o papel do Ministério do Trabalho, dentro da organização política e administrativa do Estado pós-moderno, ultrapassa os interesses dos governos que eventualmente se encontrem no exercício do poder, estando a sua existência em linha com as garantias fundamentais inerentes ao pluralismo político (de conteúdo ideológico), à dignidade da pessoa humana, à proteção dos trabalhadores e à sua forma de organização associativa e corporativa. Normas positivas na Constituição na República, nos artigos 1º, III e V, 5º, 6º, 7º, 9º, 10 e 170.
A Administração Pública deve nortear-se pelos princípios previstos no artigo 37 da CRFB; dentre estes, para o exame da questão (possibilidade constitucional da extinção do Ministério do Trabalho), destacam-se os princípios da impessoalidade e da moralidade, sendo reprovada toda conduta administrativa que cause desvio de finalidade.
Na hipótese, a extinção do Ministério do Trabalho constituiu-se num ataque direto e desmedido às forças do trabalho, que, no âmbito administrativo, foram entregues à própria sorte do capital, representado pelo Ministério da Economia que, doravante, passará ser o responsável pelas políticas públicas de fiscalização e aplicação das sanções previstas nas normas trabalhistas, política salarial, formação e desenvolvimento profissional, segurança e saúde do trabalho e regularização profissional, como previsto no artigo 31 da Lei 13.844/2019.
Esta construção administrativa, apresentada pelo atual governo brasileiro, pela qual se extingue o Ministério do Trabalho e se transferem suas principais atribuições para o Ministério da Economia, tem forte conteúdo ideológico, que desestabiliza o equilíbrio de forças entre trabalho e capital e constitui claro desvio de finalidade, que atenta contra a impessoalidade e a moralidade nas quais se deve pautar a Administração Pública, nos termos do caput do artigo 37 da CRFB.
É importante salientar que a ordem econômica brasileira, prevista no artigo 170 da CRFB, é “fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social.”
Nesse ponto, o constituinte foi explícito em dizer que o trabalho antecede ao capital. Assim, ao se propor e extinguir o Ministério do Trabalho o governo (que deve governar para todos!!!) está desvalorizando o trabalho e possibilitando eventuais práticas desumanas contra os trabalhadores (como o incentivo ao trabalho infantil e trabalho escravo), que merecem proteção do Estado brasileiro, por estarmos diante de tema sensível e caro à dignidade da pessoa humana e da prevalência dos direitos humanos (princípios fundamentais da República, artigo 1º, III, CRFB).
Assim, normas constitucionais relativas aos Direitos Humanos se sobrepõem hierarquicamente a quaisquer outros bens jurídicos, principalmente quando decorrentes de mera organização administrativa, como a proposta pelo atual governo ao extinguir o Ministério do Trabalho e transferir grande parte de suas atribuições para o Ministério da Economia. 
A extinção do Ministério do Trabalho representa o completo retrocesso social, que não encontra proteção na teoria dos direitos fundamentais, em particular dos Direitos Humanos (artigo 30 da Declaração dos Direitos Humanos da ONU de 1948); sendo importante realçar que o princípio da vedação do retrocesso social vem sendo reconhecido e aplicado na jurisprudência do STF.
Deste modo, em que pese ser possível a extinção de ministério, como previsto no artigo 48, XI, da CRFB, com a redação dada pela Emenda Constitucional 32/2001,
Segundo José Afonso da Silva, o princípio do retrocesso social “consiste em critério hermenêutico pelo qual o intérprete, quanto ao tema de igualdade de tratamento nos direitos sociais, deve manter um trajeto gradualista, sempre ascendente em busca de maior igualdade, de forma a evitar recuos históricos na proteção destes direitos. (Silva, J.A. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 1105) 
Assim, a norma constitucional deve ser interpretada, conforme e em conjunto, com outros princípios fundamentais constitucionais, de modo que os princípios maiores determinados pela Constituição (que tem entre suas finalidades a dignidade da pessoa humana, a proteção do trabalho e sua organização), tenham sempre prevalência sobre as normas de organização da Administração Pública, que deve garantir os Direitos Humanos na sua concepção finalista.
Da mesma forma, devem ainda ser sopesadas pelo intérprete a adequação e a necessidade da lei examinada (Lei 13.844/2019, artigo 57) com outros princípios fundamentais da Constituição da República (como orienta Robert Alexy), que não foram observados quando da aprovação da extinção do Ministério do Trabalho, que tem um papel institucional de promoção e garantia das forças do trabalho contra eventuais abusos do capital, seja em matéria de regulamentação das relações trabalhistas, de fiscalização, de saúde e prevenção de acidentes, de políticas salarial e sindical etc., de modo a assegurar uma ordem econômica que, antes de tudo, valorize o trabalho humano, como previsto no artigo 170 da CRFB.
Na hipótese, a ação governamental de propor e extinguir o Ministério do Trabalho tem o nítido conteúdo ideológico (manifestado, notoriamente, em diversas oportunidades, pelo chefe do governo) de enfraquecer e desvalorizar o trabalho humano.
Constitui-se ainda num gritante desvio de finalidade, no âmbito da Administração Pública, por transferir as atribuições do Ministério do Trabalho para o Ministério da Economia (voltado para as forças do capital), o que atenta também contra os princípios constitucionais da impessoalidade e moralidade.
Desta forma, entendo ser inconstitucional a extinção do Ministério do Trabalho e da norma do artigo 57 da Lei 13.844, que transforma o Ministério do Trabalho em Ministério da Economia.


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