Pular para o conteúdo principal

Uma reforma tributária justa

Jorge Folena


Advogado e cientista político






O professor aposentado de Direito Financeiro e Tributário da Uerj, Alexandre da Cunha Ribeiro Filho, experiente administrador tributário do Estado do Rio de Janeiro, tem defendido há anos uma reforma tributária justa para o país. O professor Alexandre foi um duro crítico do projeto de reforma tributária apresentado em fevereiro de 2008 pelo Governo do Presidente Lula, que tinha três vertentes: 1) a unificação da legislação federal do ICMS; 2) a criação de um IVA-Federal com a unificação da PIS, da COFINS e da Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido; e 3) a desoneração da folha de pagamento das contribuições sociais.


Segundo o professor Alexandre, nenhuma daquelas alterações acarretaria em efetiva justiça fiscal, pois todas persistem no equívoco da tributação regressiva (tributação dos consumidores) e constituem mera tentativa de copiar o modelo europeu de IVA (imposto sobre o valor agregado), totalmente diverso da realidade política, econômica e social brasileira.


A exemplo das propostas de reforma dos Governos FHC e Lula, a atual, apresentada por iniciativa da Câmara dos Deputados, por meio da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 45/2019, não toca no calcanhar de Aquiles do injusto sistema fiscal brasileiro, que faz com que a tributação recaia preferencialmente sobre o consumo, de forma regressiva e que onera basicamente a força de trabalho, num país em que, a cada ano, vem se ampliando a concentração de renda em favor dos muito ricos, fazendo com que os bancos sejam a única atividade econômica a ter aumento de lucros sucessivamente, ano após ano, e de forma exorbitante.


A proposta em debate na Câmara dos Deputados pretende unificar os tributos que recaem atualmente sobre o consumo de bens e serviços [de competência da União (IPI, COFINS e PIS), dos Estados (ICMS) e dos Municípios (ISS)] num único imposto (o IBS, imposto sobre bens e serviços), a ser administrado e compartilhado entre a União, os Estados e os Municípios.


Pela proposta, pretende-se que o novo imposto seja neutro, com uma única alíquota, sendo arrecadado pela indústria e pelo comércio, porém cobrado somente no destino, ou seja, sendo o tributo pago exclusivamente pelo consumidor final, no momento da aquisição efetiva da mercadoria ou da prestação do serviço.


Pode-se dizer que a atual proposta de Reforma Tributária, apresentada pela Câmara dos Deputados, nasceu do oportunismo político da atual legislatura (2019-2023), que, em pouco tempo, percebeu a completa falta de articulação e habilidade do Executivo, além da fraqueza política do atual chefe do Governo Federal, na relação direta com os parlamentares.


Abriu-se, assim, espaço para o presidente da Câmara dos Deputados e o Centrão apresentarem uma pauta política para o país, que, independente de ser a melhor, ou não, para o interesse da população, lhes permite a ampliação da margem das barganhas inerentes à política.


Nesta atmosfera política, onde medem forças, de um lado, os parlamentares e, do outro, o Governo Federal (além dos Estados e Municípios, pois também estão jogo os tributos de suas respectivas competências), existe a possibilidade, já declarada, de serem apresentadas outras propostas de reforma tributária para serem debatidas em conjunto com essa em curso na Câmara dos Deputados.


Eventuais propostas de reforma tributária podem contemplar os seguintes interesses:


1) da União, mediante a proposta de criação de um IVA-Federal, com unificação dos tributos de competência federal sobre bens e consumo (IPI, PIS e COFINS);


2) dos Estados, através de um IVA-Dual, no qual seriam unificados o ICMS e o ISS, com três alíquotas (uma principal, uma reduzida e outra ampliada), ficando a administração e controle do imposto para Estados e Municípios, sem a participação da União; e


3) dos municípios, que podem apresentar proposta para assegurar sua competência constitucional, conforme a estrutura federativa brasileira.


Inegavelmente, a discussão sobre a revisão tributária dos impostos e contribuições sociais (incidentes sobre o faturamento, bens e serviços destinados ao consumo final) recai em um imenso tabuleiro de forças políticas, onde os confrontos se dão por envolverem os interesses diretos das entidades federativas e suas respectivas capacidades de arrecadação de receitas.


Tais interesses não são fáceis de se compor, independente da vontade das entidades empresariais e dos consumidores de ver reduzido o alto custo de gerenciamento do recolhimento tributário e da elevada carga econômica, uma vez que causam impacto sobre o faturamento das empresas, sem que a população tenha a respectiva contrapartida efetiva de prestação de serviços públicos.


Existe, sem dúvida, a necessidade de se fazer uma reforma tributária, porém as propostas que foram apresentadas até aqui limitaram-se a tentar repassar todo o custo para a população, de forma regressiva, não havendo qualquer iniciativa por parte dos governos e do parlamento de tentar entender se é possível reduzir a carga de tributos paga pelos consumidores, além de passar a cobrar efetivamente, de forma progressiva, daqueles que, tendo muito, nada ou quase nada pagam de tributos no país.


Em um debate sério, a primeira questão a ser discutida tem a ver com o conhecimento do real montante da dívida pública da União, dos Estados e dos Municípios; em seguida, saber se a dívida pública foi ou está sendo paga pelas entidades federativas e, por fim, a possibilidade de sua quitação efetiva.


Sem o conhecimento do total da dívida pública, que só aumenta (de forma quase exponencial), não é possível reduzir a carga tributária, limitando-se os sucessivos governos, inclusive o que agora está no exercício do poder, a alegarem a necessidade de venda do patrimônio público, promovendo a entrega das riquezas do país por baixíssimos preços de mercado, para cobrir o suposto endividamento público, que nunca se finda; a exemplo do que ocorreu em todo o processo de privatização e de concessões, iniciadas nos anos noventa do século passado e mantidas em curso até hoje pelos diversos governos, nos âmbitos federal, estadual e municipal.


Com o país queimando o seu patrimônio, a cada ano fica mais pobre e amplia-se a concentração de renda nas mãos de uns poucos, que tudo podem, em detrimento da massa da população.


A segunda medida seria restringir ao máximo a concessão de desonerações tributárias, por meio de redução de base de cálculo, não-incidência, isenções, contratos de regimes especiais etc., o que acaba possibilitando favores para alguns e desigualdades para o conjunto do país.


A terceira medida, urgente e necessária, seria tornar eficaz o princípio constitucional da progressividade, na medida em que, atualmente, os mais ricos não pagam tributos de forma justa em relação à classe média e aos demais trabalhadores.


Pode-se afirmar, sem nenhum temor, que o patrimônio e a renda dos muito ricos quase não é tributado. O Portal G1, em 22/06/2019, às 8h27, anunciou que: “DADOS DO IR (IMPOSTO DE RENDA) MOSTRAM QUE SUPER RICOS TÊM MAIS ISENÇÕES E PAGAM MENOS IMPOSTOS NO BRASIL. Quanto maior a faixa de renda, maior é a parcela de rendimentos isentos, o que faz com que o topo da pirâmide pague uma alíquota efetiva menor. Faixa mais alta de renda paga, em média, 2% do IR, ao passo que faixas intermediárias pagam até 10,5%.”


Portanto, uma reforma tributária justa tem que, essencialmente, rever a tributação regressiva, que recai diretamente sobre a população mais pobre e a classe média, passando a incidir a tributação, verdadeiramente de forma progressiva, sobre os muito ricos, que nada ou quase nada pagam de impostos no país.


O debate aberto pela Câmara dos Deputados, por meio da PEC 45/2019, não toca neste ponto, o que nos permite afirmar que não se trata de uma reforma tributária, mas de mera tentativa de revisão dos tributos que incidem sobre o consumo da população, que, ao final das contas, continuará suportando todo o ônus tributário e ficará cada dia mais pobre, diante de governos totalmente desinteressados em fazer justiça fiscal e prestar serviços públicos dignos.


Sem propostas verdadeiras para o país, limitam-se a repetir o lugar comum, qual seja, que tais reformas são necessárias para o bem do país etc. Porém, elas têm se revelado contrárias aos interesses do povo, que está sem emprego formal, sem previdência, sem saúde, sem assistência social e sem educação, apesar de pagar, e muito, por tributos que não lhe favorecem.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

GOVERNO LULA SOB ATAQUE: a conspiração lavajatista continua

     Foto de Ricardo Stuckert Por Jorge Folena O Governo Lula ainda não completou 100 dias, não tomou qualquer medida dura contra o mercado financeiro nem conflitou com a classe dominante, porém os lacaios de sempre já disparam sua ofensiva nos meios de comunicação tradicional,  a fim de tentar domesticar o presidente.  Nesta última semana,  entre os dias 20 e 22 de março, a visita de Xi Jin Ping a Vladimir Putin deixou  definitivamente evidente a formação do mundo multipolar e o processo de declínio do império anglo-americano, que ao longo de mais de dois séculos de dominação não apresentou qualquer alternativa de esperança e paz para os povos do mundo; ao contrário, deixou um legado de guerras, destruição, humilhação e exploração. Exatamente ao final daquele encontro e diante dos preparativos para a viagem do Presidente Lula à China, o céu desabou sobre a cabeça do representante do Governo brasileiro, que está sendo atacado pelos lavajatistas plantados pelo Departamento de Justiça no

GARANTIA DA LEI E DA ORDEM: incompatível com a República

Proclamação da República, Benedito Calixto, 1893. Por Jorge Folena [1]   Em agosto de 2019, diante das pressões políticas de grupos autoritários e da tentativa de fortalecimento da extrema-direita na Alemanha, foi retomado o debate naquele país sobre “os três erros fundamentais da Constituição de Weimar”, que completava cem anos naquela oportunidade. Os três erros da mencionada constituição seriam os artigos 24, 48 e 53 que, respectivamente, previam em linhas gerais que: (a) o presidente poderia dissolver o parlamento; (b) o presidente poderia, com a ajuda das forças armadas, intervir para restabelecer a segurança e a ordem pública; e (c) a nomeação do primeiro ministro como atribuição do presidente. Como afirma  Sven Felix Kelerhoff [2] ,   essas regras eram “herança da constituição do império”, que a ordem republicana, introduzida em Weimar  em 1919, não foi capaz de superar e possibilitaram a ascensão do nazismo de Hitler, na Alemanha, a partir de 1933. Para nós no Brasil é muito im

INÍCIO DA TEMPORADA DE CAÇA AOS OPOSITORES DO GOVERNO

Caçada na floresta, Paolo Uccello, 1470  Por Jorge Folena [1]   Divirjo totalmente do governador do Estado do Rio de Janeiro, eleito em 2018 na onda da extrema direita, que empregou métodos de propagação de mentiras sistemáticas pela rede mundial de computadores, com forte evidência de abuso de poder econômico, como está sendo examinado pelo Tribunal Superior Eleitoral em relação à chapa vencedora, de forma questionável, na eleição presidencial. O governador do Rio de Janeiro não apresentou, até aqui, qualquer política pública para melhorar a vida da população pobre do Estado, mas incentivou, desde o primeiro dia de seu governo, a continuação de práticas policiais abomináveis e desumanas, tendo sugerido à polícia “mirar na cabecinha” para o abate de seres humano. Contudo, mesmo com todas as divergências contra o governador, não é possível aceitar, com passividade, o seu afastamento do cargo por decisão liminar proferida por um ministro do Superior Tribunal de Justiça; que, em verdade,