No início de julho de 2017 escrevi um ensaio com o título “Sequestro das nações pelo capital”, cujo tema central é a concentração crescente do poder econômico e o controle da política exercido pelos agentes do mercado financeiro. Nesse trabalho ressaltei que:
“O quadro tornou-se mais
grave em razão da crescente concentração de capitais, que, na prática, faz com
que a maioria dos governos e suas respectivas burocracias trabalhem não mais
para seus povos, mas para os bancos e financistas, que não têm pátria nem alma.
A partir de Davos ou de
qualquer outro recanto do mundo, este contingente de menos de 1% controla todas as pessoas e
riquezas do planeta, tendo forças militares (como as da Organização do Tratado
do Atlântico Norte, pagas pela arrecadação de tributos dos 99% da população) a
seu serviço para reprimirem outros povos; enfim, mandam e desmandam com os
recursos suportados pelo trabalho da sociedade.
Com efeito, trabalhar
para resgatar a soberania nacional passa a ser um desafio, nesta luta sem
trégua pela qual os financistas tentam tirar dos povos dos países a sua
autodeterminação e dignidade.
Os mais de noventa e
nove por cento da população mundial (em vários países) vivem reféns do mercado
financeiro, num processo de servidão perversa, em que se imagina haver
liberdade, mas onde não há condições para que o ser humano consiga suprir suas
necessidades básicas.”
É
sob a perspectiva da defesa da soberania nacional que o Dr. Osny Duarte Pereira
(juiz do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, cassado pela ditadura de
1964-1985, jornalista, escritor e magnífico pensador brasileiro) em 1962 já
denunciava os ataques que o capital promovia sobre o povo e as riquezas do
Brasil, valendo-se de políticos que pouco representavam os interesses dos titulares
da soberania popular, em situação muito semelhante à que se apresenta no Brasil
de 2017.
Quem faz as leis no Brasil? é um
pequeno grande livro de 1963, que compõe a coleção Cadernos do povo brasileiro,
editada pela Editora Civilização Brasileira.
A
proposta originária do autor, como veremos a seguir, era permitir aos jovens (e
particularmente os estudantes de Direito) a compreensão de como são feitas as
leis, para não ficarem limitados ao seu estudo enquanto produto legislativo
acabado, comumente feito nas faculdades de Direito:
“Portanto, para saber
quem faz as leis no Brasil, não é tão importante conhecer a máquina de produzi-las,
como, sobretudo, inquirir de onde vêm as forças que impulsionam aquela máquina.
(...) Nas Faculdades de Direito ensinam-lhes
todo o mecanismo. Não há, porém, nenhuma
cadeira, em todo o quinquênio escolar, que se ocupe com o estudo das forças que
movimentam a engrenagem complicada de elaboração das leis. Se algum professor
penetra nesse terreno, é por conta própria. Não é bem visto pelos colegas da
Congregação. Não passará de um ‘comunista encapuçado’, um ‘demagogo na feira
das vaidades’.”
Nos
dias de hoje, da mesma forma como demonstrado por Osny Duarte Pereira, esse mesmo
professor poderá ser perseguido pelo “Escola sem partido”, apenas por tentar
demonstrar a seus alunos algumas das causas do mal-estar em que tem vivido a
sociedade pós-moderna, como apontado por Freud.
A
proposta de Osny demonstra o quanto é importante, não só para os juristas, mas
para toda a sociedade, compreender integralmente o processo que dá origem às
leis, perscrutando as suas causas e os bastidores de cada proposição.
Neste
ponto, atribui-se a Bismarck a seguinte afirmação: “os cidadãos não poderiam dormir tranquilos se soubessem como são feitas
as salsichas e as leis”. Nos dias de hoje, no Brasil, tal assertiva deveria
fazer com que a maioria esmagadora do povo brasileiro ficasse sem dormir,
diante da ausência de perspectiva de futuro acarretada pelos cortes promovidos
nos direitos sociais (trabalho, previdência, saúde, educação, moradia, lazer,
cultura, segurança), em benefício do capital especulativo, que impõe mais e
mais horas de trabalho sem quaisquer vantagens, a não ser pagar cada vez mais
tributos, enquanto os muito ricos ficam isentos.
A
democracia representativa foi sequestrada pelo capital e o povo brasileiro serve
apenas para votar em candidatos (financiados com dinheiro de empresas privadas)
que, depois de eleitos, dão as costas para a população.
O
mestre Osny nos apresenta em sua obra um
quadro que, a despeito de descrever o passado, surpreende pela atualidade ao
fazermos uma comparação com a falsa democracia brasileira dos dias de hoje:
“Aparentemente quem faz
as leis no Brasil são os membros do Poder Legislativo. Assim é em toda
democracia representativa – fórmula que tão avidamente defenderam os governos
das vinte repúblicas reunidas em princípios de 1962, ao tratar da expulsão de
Cuba da Organização dos Estados Americanos (OEA).
As críticas que iremos
desenvolver no andamento deste trabalho não pretenderão absolutamente
demonstrar que seja condenável a democracia representativa. Ao contrário,
insistiremos em que todo o regime deverá ser democrático e representativo da
coletividade. Nossos estudos serão no sentido de verificar se realmente é
democracia representativa o regime praticado e se aquilo que está na letra da
Constituição e das leis está na realidade dos fatos, isto é, se vivemos num
regime em que existe liberdade de imprensa, liberdade de pensamento, liberdade
de escolha dos mandatários do povo,
liberdade para esses mandatários fazerem as leis que interessem ao mesmo
povo num regime em que a Constituição e as leis se apliquem a todos, de modo a,
em última análise, ser verdadeiro o preceito constitucional que reza: ‘Todo o
poder emana do povo e em seu nome será exercido’. Iremos ver se é esse o regime
que se pratica no Brasil, conforme se
explica nas escolas primárias, secundárias e superiores, ou se, ao contrário do
que muitos sinceramente acreditam, quem faz as leis no Brasil, naquilo que é
fundamental, é, na realidade, um pequeno grupo de empresas estrangeiras. Numa esfera não fundamental, mas ainda muito
importante, teríamos outro pequeno grupo de empresas e homens de negócios
nacionais ditando a feitura das leis no Brasil. Veremos, finalmente, se as leis
que se fazem, em real proveito da coletividade, surgem por imperativo da
vontade do povo ou, apenas, quando há choques nos interesses de tais grupos e
quando, um deles, para sobreviver, necessita de apoio popular e, então, como um
donativo e um chamariz, tais leis benéficas são deixadas escapulir. Se nossa
Constituição tiver sido elaborada por essa última forma, nesse caso, quem faz
as leis no Brasil não será o povo, nem
serão seus mandatários, porém, um certo número de pessoas que detêm o poder. O
Brasil não estará sendo uma democracia representativa, como se costuma afirmar,
porém uma oligarquia, ou plutocracia, ferreamente plantada sobre a cegueira de
dezenas de milhões de brasileiros.”
A
boa literatura tem denunciado, bem antes de Osny Duarte Pereira, a farsa da
representação popular. Zola, em
Germinal, já perguntava em 1885:
“Quem poderia afirmar
que os trabalhadores tiveram sua parte razoável dentro do extraordinário
crescimento da riqueza do bem-estar nos últimos cem anos? Haviam zombado deles
ao serem declarados livres: é isso,
livres para morrer de fome, do que, aliás, não se privavam. Depois de serem eleitos, os malandros caíam
na farra, deixando os trabalhadores
esquecidos como se fossem velhos calçados. Não dava pão a ninguém votar em
malandros que, eleitos, só queriam locupletar-se, pensando tanto nos miseráveis
como nas suas botas velhas.”
Afirma-se,
no Brasil do passado e do presente, que o povo é o detentor de todo o poder; e
nós, profissionais do Direito, acreditamos fielmente no texto da Constituição,
que diz que “todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido”. Porém,
Osny Duarte Pereira desnuda essa convicção, transmitida como dogma nas salas de
aula dos cursos jurídicos:
“Bacharéis honrados e
até cultos chegam mesmo a crer convictamente nesse dogma. Que pessoas são
consideradas povo, quantos são esse
povo, que requisitos precisa ter alguém para ser considerado do povo, como se
funda um partido, o que é realmente preciso para ter um partido político, como
se organiza a lista dos candidatos, quais são os efetivos requisitos, nada
disso faz parte oficialmente do programa de ensino nos cursos jurídicos. Também
se ensina que o voto é livre por ter a
garantia de ser secreto. É outro dogma.
Não se indaga se essa vontade livremente exercida atrás da cortina de votar
pode ter sido condicionada, por uma propaganda dirigida no rádio, na televisão,
nos melhores artifícios de uma empresa
de publicidade, no fato de precisar o eleitor de um emprego, de um leito de
hospital e até de um par de sapatos.”
Considerando
os acontecimentos políticos de 2016 e 2017, é forçoso concluir que inexiste
diferença entre o passado e o presente na democracia do Brasil, na medida em que as leis que estão sendo aprovadas,
propostas sob o rótulo de “reformas”, têm servido exclusivamente aos interesses
do mercado financeiro contra o povo brasileiro, num ataque, sem medida, à
soberania popular e nacional.
Por
isto, recomendamos a retomada da leitura de “Quem faz as leis no Brasil?”, de Osny Duarte Pereira, para ajudar a
compreender o cenário político atual no país.
E, para reflexão, deixamos a indagação com que o mestre encerra a sua
obra, em 1962: “Quando passará o povo a ser voz dominante no
Congresso?”
Comentários
Postar um comentário