O enterro, Candido Portinari, 1959. |
A Lei 13.979, de 06/02/2020, estabelece que, para o enfrentamento do COVID-19, as autoridades poderão adotar as seguintes medidas: isolamento, quarentena e restrição excepcional temporária, que poderá ser decretada conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, visando o controle da circulação por rodovias, portos ou aeroportos de entrada e saída do país e locomoção interestadual ou intermunicipal.
Além disso, diversos Estados e Municípios, diante do aumento assustador da crise sanitária, com a morte de milhares de pessoas e aumento do contágio, que tem levado à saturação do sistema de saúde, têm adotado medidas para restrição à circulação total de pessoas e fechamento de todas as atividades econômicas que não sejam consideradas essenciais.
Os Estados do Maranhão e do Pará já estão executando medidas severas de restrição à circulação, baseadas em estudos e laudos científicos que apontam a necessidade dessa providência para tentar diminuir a pandemia, uma vez que os hospitais destes Estados estão sobrecarregados e pessoas estão morrendo aos montes.
Para isto, aqueles Estados têm adotado o denominado “lockdown” (confinamento ou fechamento total), impedindo a circulação de pessoas.
Em razão disso, ampliou-se o debate sobre a possibilidade de restringir o direito de ir e vir das pessoas, uma vez que o chefe do Governo Federal tem sido um entusiasta da ideia de que que todas as atividades empresariais continuem a funcionar livremente, mesmo com a ampliação das mortes e dos infectados pelo COVID-19 no país.
Em razão disso, e também da decisão proferida em 06/05/2020 pelo Plenário do STF, na ADI 6.343, que decidiu que Estados e Municípios não precisam de autorização da União para adotarem medidas de restrição à locomoção durante a pandemia, resolvi restaurar o texto em que analisei questão semelhante, sobre a possibilidade de restrições ao direito de ir e vir, a partir da própria Constituição Federal.
O Portal G1 publicou matéria em 09/04/2020, às 19h25, sob o título: “Justiça Federal libera circulação de transporte intermunicipal de passageiro no RJ”. Segundo a reportagem, a Justiça atendeu a pedido do Ministério Público Federal para anular decreto do governo do Estado do Rio de Janeiro, que impediu, por prazo determinado, como medida de enfrentamento da crise sanitária do COVID-19, a circulação de ônibus, vans e táxi entre os municípios do Estado.
Para a juíza prolatora da decisão, “a proibição de circulação intermunicipal de passageiros revela-se um meio demasiadamente gravoso para a população (... que) sofre severa restrição ao direito fundamental de ir e vir”.
“Ninguém vai tolher meu direito de ir e vir”, manifestou igualmente o ocupante da Presidência da República, em 10/04/2020, ao circular e apertar as mãos das pessoas pelo Plano Piloto de Brasília, tendo, inclusive, esfregado o nariz, dando em seguida a mesma mão com que o esfregara para uma anciã, pessoa na faixa de risco do COVID-19.
Sem dúvida, o direito fundamental de ir e vir constitui, juntamente com o direito natural à vida, o mais relevante do atual período histórico, que tem na liberdade formal o seu ponto central. O direito de ir e vir é tão forte que, desde o período feudal, tem a proteção no remédio processual do habeas corpus, em favor dos indivíduos contra detenções ilegais, promovidas por parte dos agentes do Estado.
Contudo, apesar de fazer parte da pedra de fundação do sistema político em vigência, as liberdades não são absolutas, como demonstraram os utilitaristas (Stuart Mill), diante da necessidade de se proteger o bem comum, de forma a assegurar, ao máximo, a felicidade e o bem estar.
Assim, a liberdade de circulação ou locomoção de um indivíduo (o ir e vir) pode ficar limitada em situações especiais, para proteger os direitos da coletividade, como ocorre em casos de guerra e de calamidades públicas.
A própria Constituição, em seu artigo 5º, XV, diz que “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”.
Ou seja, em tempo de paz a liberdade de circulação é uma garantia individual plena; contudo, num estado de guerra pode sofrer limitação. A grave crise sanitária do COVID-19 impôs um verdadeiro estado de guerra aos países, inclusive a justificar a declaração de estado de calamidade pública em defesa da saúde da população, direito natural por excelência.
Nesse passo, ao estabelecerem barreiras sanitárias ou impedirem a livre circulação de transportes públicos para controlar o ingresso de pessoas em cidades ou Estados-membros, as autoridades estão atuando dentro dos limites da Constituição, quanto à limitação ao direito de ir e vir, pois estão atuando num estado semelhante ao de guerra contra o COVID-19, que inclusive conta com um orçamento próprio aprovado pelo Congresso ("orçamento de guerra").
Com efeito, as barreiras e as restrições de circulação, da maneira como estão sendo executadas pelos governos estaduais e municipais, estão dentro do seu poder de polícia, diante da crise sanitária em curso. De forma geral, estão sendo cumpridas com proporcionalidade e razoabilidade, conforme a competência federativa concorrente dos referidos entes, com a finalidade de assegurar o direito à saúde da população, que é dever do Poder Público.
Além disso, a decretação do “lockdown”, ora implantado por diversos Estados, se faz necessária para assegurar a saúde das pessoas; mesmo não havendo previsão expressa para estas restrições na Lei Federal nº 13.979, de 06/02/2020, diante do estado de calamidade pública em vigor (semelhante ao estado de guerra), a Constituição Federal assegura aos governadores e prefeitos que comprovarem, por meio de laudos técnicos, a necessidade da medida restritiva, determinar o fechamento de todas as atividades econômicas para proteger à saúde das pessoas.
Não é correto que uns tenham consciência e façam isolamento social, enquanto outros continuam a propagar o vírus, retardando o seu controle e possibilitando a morte massiva de pessoas pelo contágio ou pela falta de atendimento hospitalar.
O STF entendeu, em 06/05/2020, que a “adoção das medidas restritivas relativas à locomoção e o transporte, por qualquer dos entes federados (inclusive a União, caso queira), deve estar embasada em recomendação técnica fundamentada por órgãos de vigilância sanitária e tem de preservar o transporte de produtos e serviços essenciais, assim definidos nos decretos da autoridade federativa”. E, nesse ponto, o presidente do Tribunal, Dias Toffolli, manifestou que a tomada de qualquer decisão sobre o assunto não poderia se basear “em simples opiniões pessoais de quem não detém competência ou formação técnica para tanto”.
O presidente diversas vezes afirmou em público que o COVID-19 era uma “gripezinha”, opinião aparentemente embasada em sua constatação de que “brasileiro mergulha em esgoto e não acontece nada”; essas ideias foram repetidas em gesto de desrespeito ao ex-Ministro da Saúde e sua equipe demitida.
Salientamos, contudo, que, na sempre necessária ponderação dos princípios fundamentais, temos que considerar que, entre a limitação provisória ao direito de liberdade de circulação e o direito à saúde, esta última deve prevalecer sobre aquela, uma vez que a razão existencial do homem é a manutenção da vida, de preferência com dignidade, devendo ser evitada qualquer morte.
Sendo assim, o “lockdown” é medida urgente a ser tomada em Estados como o Rio de Janeiro, em que 98% do sistema de saúde público está congestionado, de forma a impedir o avanço dos contágios e mortes causadas pelo COVID-19, tendo o Governador a responsabilidade de decidir sobre a preservação da vida de milhares de pessoas, estando, a partir de 06/05/2020, respaldado pela decisão do Plenário do STF, que se tornou necessária, diante da crise gerada, ainda que a própria Constituição Federal lhe dê amplas garantias jurídicas.
Na verdade, diante do aparente confronto entre os dois princípios aqui examinados, pode-se afirmar que os Governadores têm a obrigação de decidir pela preservação do direito à vida, pois sem ela, nada mais importa, nada mais resta.
Excelente texto.
ResponderExcluirPreservação do direito à vida, pois sem ela, nada mais importa.