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O FIM DA NOVA REPÚBLICA BRASILEIRA

 A eleição indireta de Tancredo Neves para presidente de República, em 1985, por meio do Congresso Nacional, representou simbolicamente o fim da ditadura militar-civil (1964-1985).
Ao ser eleito, Tancredo afirmou que, a partir daquele momento se iniciava uma “Nova República”, expressão que passou a denominar o projeto inicial da transição da ditadura para o regime democrático, em um processo que foi amplamente “tutelado pelos homens do antigo regime”.
Este acordo entre o “antigo” e o “novo” teve como consequência a convocação de uma constituinte, eleita em 1986, que se reuniu de 1987 a 1988 e foi encerrada com a promulgação da atual Constituição, denominada “cidadã” por Ulysses Guimarães (Presidente da Assembleia Nacional Constituinte). Isto porque assegurava e, principalmente, resgatava as normas liberais fundamentais dos direitos individuais, sociais e da ordem democrática, e ainda tinha como marca a salvaguarda da defesa da soberania nacional, representada pelo monopólio do petróleo da Petrobras.
Porém, no governo de Fernando Henrique Cardoso, a parte da constituição relativa à defesa da soberania nacional praticamente foi demolida, tendo sido imposto, de forma arbitrária e sem debate popular, o término do monopólio do petróleo da Petrobras.
Igualmente arbitrária foi a revisão do conceito de empresa nacional, que abriu caminho para a privatização das empresas de telecomunicações, ou seja, da estratégica tecnologia da informação e do acesso à rede mundial de computadores. Foi também privatizada a Companhia Vale do Rio do Doce, mineradora estatal detentora das maiores reservas de minerais do mundo, vendida por valor insignificante.
 Todos esses atos foram praticados para atender aos interesses da doutrina da globalização, imposta pelo “neoliberalismo” e decorrente do final da guerra fria (1990), cujos arautos ousaram expressar, falsamente, para o mundo todo ouvir, que era chegado o “fim da história”.
Mas, ao contrário do que anunciaram, a História não terminou e jamais terminará, enquanto o homem viver na face da terra, por ser produto da criação cultural. O mundo se insurgiu contra esta farsa e, em vários lugares, governos populares chegaram ao poder, a exemplo do caso brasileiro, com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva em outubro de 2002.
Foi a Constituição de 1988, arranjo decorrente da “Nova República”, que permitiu que Lula pudesse governar (com acertos e desacertos) e implantar, no Brasil, uma série de políticas públicas destinadas a assegurar o mínimo de cidadania para quem, até então, nunca havia tido nada.
É verdade que o governo de Lula, para poder administrar, teve que flertar internamente com agentes do antigo regime e precisou também atender aos interesses do capital financeiro hegemônico. Mas tudo isto foi consequência do acordo firmado na constituinte de 1987/1988, que impede qualquer partido, eleito pela via democrática, de ter a maioria necessária para governar o Brasil.
É verdade também que Lula e sua sucessora Dilma Rousseff, bem como o seu partido (PT), não trabalharam duramente para realizar uma verdadeira reforma política e eleitoral; igualmente, nada fizeram para interromper o abusivo controle dos meios de comunicação social, concentrado economicamente nas mãos de poucos agentes privados, que há décadas indicam o tom e exercem o verdadeiro comando da política, por força do poder “espiritual” e “simbólico” que exercem sobre a população, por meio da opinião pública.
O golpe jurídico-institucional que se consumou em 11 de maio de 2016 e que, indevidamente, afastou o governo Dilma Rousseff, em decorrência da mera aceitação da abertura do processo de impeachment, deixa evidente o fim da era da “Nova República” e mostra o completo desgaste do pacto político-jurídico expressado pela Constituição “cidadã” de 1988.
A Constituição foi rompida com o apoio das instituições políticas, como o Legislativo e o Judiciário, que referendaram que o então vice-presidente da República pudesse instalar um novo e ilegítimo governo, mediante a execução de um plano de governabilidade não respaldado pela soberania popular e que atenta diretamente contra a classe trabalhadora, como já se vê pelas primeiras medidas anunciadas.
Mais uma vez, o povo, no Brasil, assistiu a tudo sem ter sido consultado sobre nada e sem ser chamado a participar, a exemplo do que já ocorrera na fundação da própria República, em 1889; na denominada “Revolução” de 1930; na implantação ditatorial “Estado Novo”, em 1937; no golpe militar-civil de 1964; e, até mesmo, no que Tancredo Neves denominou de “Nova República” (ainda que precedida pelo “Diretas já”, movimento derrotado no Congresso Nacional pelo governo do general ditador João Batista Figueiredo).
 A Constituição de 1988 não conseguiu assegurar a democracia e foi manipulada para se executar a fraude jurídica do impeachment e assegurar o afastamento inconstitucional do governo de Dilma Rousseff.
Em razão disso, o pacto político/jurídico brasileiro deixou de existir e, tendo em vista os acontecimentos, não se encontram mais presentes as condições para que se mantenham intactas as garantias individuais, os  direitos sociais e a soberania nacional, ainda que previstos na Constituição de 1988, pois, doravante, abriram o caminho para o seu descumprimento, sem nenhum pudor e com a chancela judicial. 
Por fim, vale lembrar que, de abril de 1964 até a outorga da Emenda Constitucional número 01/1967, o Supremo Tribunal Federal permitiu que o regime golpista e ditatorial recém implantado praticasse uma série de violências contra a Constituição de 1946. Essa permissividade do STF colaborou, sem nenhuma dúvida, para a implantação do Ato Institucional número 05, de 13/12/1967. Ou seja, a ordem constitucional de 1946 (vigente à época) já tinha sido derrogada há muito tempo, sob os olhos e a chancela de uma Suprema Corte que manteve um número expressivos de prisões e compactuou com o processamento de civis pela Justiça Militar, conforme pesquisa registrada em nosso livro “O poder judiciário e as ditaduras brasileiras”.


Comentários

  1. é óbvio o fato de que a própria ordem constitucional de 1988 terá sido uma falácia para acomodar o rito neoliberal com este percorrendo as instáncias da ordem econômica internacional.

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